USUÁRIOS DE “ADORAÇÃO”
Alguns crentes são tão friamente
intelectuais que se questiona serem eles mamíferos de sangue quente,
para não dizer seres humanos, ao passo que outros são tão emocionais que
se deseja saber se são possuidores de uma porção mínima de massa
cinzenta. Eu me sinto constrangido a dizer que o mais perigoso dos dois
extremos é o anti-intelectualismo e depois a entrega ao emocionalismo.
John Stott, Cristianismo equilibrado
O assunto de louvor e adoração é sempre
polêmico de se abordar. Por um lado, temos uma ala tradicional que quer,
a todo custo, tirar toda a emoção da adoração. Do outro, há uma certa
cultivação de um desespero e uma busca desenfreada por Deus, que vem
acompanhada de uma avalanche de emoções. A resposta para tal questão é
uma busca constante por equilíbrio, o entendimento do papel de cada
faculdade humana no relacionamento com Deus. Hoje, porém, quero abordar o
perigo do lado emocional.
Antes de mais nada, por favor entenda o
seguinte, pois sei que estou pisando em campo minado: não escrevo a fim
de me intrometer na vida de quem quer que seja. Você tem total direito
de discordar dos meus pensamentos e em nenhum momento quero que minhas
palavras sejam usadas para criar uma norma. Não quero reprimir ninguém
nem apontar o dedo. Porém, reconheço que os pensamentos que trago
confrontam a prática de alguns. Se você estiver em paz com a sua vida
espiritual após discordar do que escrevi, glória a Deus por isso.
Escrevo para cutucar (levemente) aqueles que possam estar enveredando
por um caminho perigoso sem saberem. A única coisa que desejo verdadeira
e explicitamente interromper é uma vida espiritual ignorante e
preguiçosa. Se esse não for o seu caso, glória a Deus pela sua vida!
Confissões de um ex-viciado em adoração
Me deparei, recentemente, com o relato
de um jovem que descreveu um vício. Ele narra o seu processo de
“libertação”, por assim dizer, de ministérios de louvor. Recomendo a
leitura do artigo, que você pode conferir aqui. Já estamos cansados de
bater no “louvor show” e no mercado gospel. Não farei isso. O que me
intrigou no texto citado foi a seguinte afirmação:
“Eu queria mais
daquilo, eu queria “experimentar” a presença de Deus. Foi aí que
descobri a indústria Gospel (…) Assim como hoje, meu coração possuía um
forte desejo de ser missionário, de influenciar a sociedade com o
Evangelho e mudar o mundo! Foi exatamente isso que encontrei (…). Só que
isso nunca era suficiente para mim. Sempre queria mais e foi aí que a
“adoração” se tornou um vício para mim. Eu baixava um novo CD (…) de
“adoração” praticamente todo dia. Nesse período eu nunca deixei de ler a
Bíblia, mas ainda assim não conseguia enxergar o meu erro. Necessitava
diariamente de um novo hit, de uma nova canção de adoração para
“experimentar” a presença de Deus, mas quanto mais eu buscava a Deus
dessa forma mais eu me distanciava d’Ele.”
Muitas vezes, os consumidores vorazes de
CDs e DVDs de adoração o fazem para preencher uma lacuna em suas vidas.
Em vários casos, há um desejo por Deus que raramente repercuti no resto
da vida da pessoa. Ela sabe todas as letras de cor, mas não consegue
enxergar uma vida de adoração longe das músicas.
Lembro-me de um episódio de um conhecido
que pegou carona com uma senhora da igreja. Ela estava ouvindo um CD de
adoração no carro. A senhora o perguntou que ministérios ouvia, ao qual
ele respondeu que não costumava ouvir músicas de adoração e que
preferia música clássica, entre outros gêneros. Ela ficou espantada com a
afirmação e perguntou como que ele podia passar tanto tempo entre um
culto e outro sem “adorar” a Deus. Ele, sem graça, não resistiu e
respondeu: “Bem, se Jesus voltar de segunda a sábado, então eu acho que
vou para o inferno.”
Tanto na confissão quanto no episódio
citado, o que me intrigou foi o conceito restrito de ambos sobre a
adoração. No caso do ex-viciado, ele nunca deixou de ler sua Bíblia, mas
mesmo assim estava errado. Não podemos simplesmente afirmar que ele
rejeitava a Palavra de Deus. O que espanta é uma cegueira genuína, uma
busca sincera (porém errada) por Deus.
“Mestre, é bom estarmos aqui…” […] (Ele não sabia o que estava dizendo.)
Quando Jesus subiu ao monte para orar
acompanhado de Pedro, João e Tiago, seu rosto e suas vestes se
transformaram. No relato da Transfiguração (Mt 17.1-8; Mc 9.2-8; Lc
9.28-36), Jesus começa a conversar com Elias e Moisés. Perante aquele
momento ímpar e (sem dúvida) indescritivelmente incrível, Pedro faz a
seguinte afirmação: “Mestre, é bom estarmos aqui. Façamos três tendas:
uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias”. (Lc 9.33) Será que Pedro
estava sendo egoísta ao fazer tal afirmação? De maneira alguma! Afinal,
segundo alguns comentaristas bíblicos, ele estava contemplando Jesus já
em sua forma divina! Quem não gostaria de estar perante o Cristo já em
sua forma final? Caso estivéssemos nesse lugar, por que razão sair dalí?
O que seria mais importante que estar na presença do Filho?
Bem… a resposta à boa intenção de Pedro é
o mais interessante. Jesus não o repreende como em outros relatos. Em
vez disso, uma nuvem envolve os três apóstolos (fato que os aterrorizou)
e Deus diz: “Este é o meu Filho, o Escolhido; ouçam a ele!”. (Lc 9.35) O
que aconteceu ali? O acontecimento serviu para confirmar o testemunho
da Lei (Moisés) e dos profetas (Elias) de que Jesus era o Messias. Por
mais que o desejo de Pedro de estar ali naquele ambiente muito bom e
prazeroso, o intuito de Deus naquilo era outro. Tanto que, em seguida,
Jesus desce do monte com os três e se depara com um jovem possesso. De
acordo com o comentário do Pr. Russell Shedd a respeito desse texto, “a
sequencia da transfiguração e depois a cura do jovem ensinam a
necessidade do serviço suceder ao culto. Apenas a permanência no monte
do êxtase, sem tentar melhorar a vida dos outros no vale, ou vice-versa,
resultam na falta de poder.”
O que tirar disso?
Por mais bem intencionado que Pedro
estava, isso não justificou o seu erro. Ele não entendeu o objetivo
daquele evento. Paralelamente, imagino que o ex-viciado também tinha a
melhor das intenções! Porém ele, assim como Pedro, estava errado. Mas
então… seria errado buscar uma vida de contemplação contínua de Cristo?
Qual é o problema de se buscar a Deus acima de qualquer outra coisa?
Afinal, não há nada mais importante. Certamente. Mas será que ao
focarmos demais nessa busca, na experiência da presença de Deus, não
estaríamos o fazendo apenas pelo prazer que isso produz em nós? Será
que, inversamente, queremos a “presença Dele” somente pelo que isso
produz… em nós? Então, a motivação da busca Dele é focada apenas no
nosso prazer. Por mais genuíno, lícito e bem intencionado que seja,
podemos buscar Deus “apaixonadamente” de maneira completamente
equivocada e focada em nós. É uma armadilha sutil, e é por isso que quis
abordá-la. Mas não se preocupe, como todo pecado que nos afasta de um
real relacionamento com Deus, esse também não é novidade na história.
Misticismo e espiritualidade medieval
Em seu texto Sobre Espiritualidade,
Místicos e Neoliberais, o Rev. Augustus Nicodemus descreve um movimento
místico medieval que era focado justamente na busca e contemplação
irrestrita de Deus. Ele diz:
“Sei que alguns
místicos citavam a Bíblia, mas vai uma distância muito grande entre
fazer isso e desenvolver uma espiritualidade que seja decorrente da
teologia bíblica. A piedade ascética certamente não era moldada pelas
Escrituras, a começar pelos votos de abstinência, a auto-flagelação, o
isolamento social e uma vida dedicada à contemplação. Para não falar na
busca de Deus de forma direta. A mística medieval, com raras e notáveis
exceções, é voltada para a experiência interior, para a busca do êxtase,
do mistério, de uma comunhão com Deus que não tenha troca de conteúdos,
onde o homem não fala teologicamente e Deus também não responde
teologicamente.”
Creio que a descrição na segunda parte
da citação (grifada por mim) descreve bem até demais a busca de muitos
hoje que correm insaciavelmente atrás da “experiência de adoração”.
Estádios lotados e corações vazios
Ao ir a cada evento, a cada culto e ao
reproduzir os CDs durante a semana, nós queremos cultivar e de alguma
maneira manter aquele “clima gostoso” da adoração. As frases repetidas,
as mãos levantadas, a sensação de gritar a plenos pulmões até o ar fugir
de nós, o choro, o balanço do corpo de lá para cá ou se ajoelhar e “se
prostrar” no chão, o salão à meia luz, o riff de guitarra suave ao
fundo… Não queremos perder aquilo. Mas o que talvez seja o aspecto mais
assombroso de tudo isso é o fato de que nenhuma adoração parece
satisfazer plenamente. É gravação de DVD após CD após evento após
“festival de louvor” após “cultaço”… e nunca alcançam o que procuram.
Continuam “desesperados de amor” por Cristo, mas parecem nunca
encontrá-lo. Agostinho de Hipona disse:
“Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti.”
Se fomos criados para Ele e não
encontramos descanso em nenhuma adoração, a conclusão lógica é a de que
Deus não está na adoração. A adoração não é um fim em si mesmo, é apenas
um dos meios pelos quais nos aproximamos de Deus. Assim como na
transfiguração, cabe a nós entendermos o real propósito da adoração e o
seu lugar no plano maior da nossa vida com Cristo. Não é a toa que
nenhuma experiência de louvor é suficiente, pois Deus não está no
louvor. Este é apenas um meio e não um fim.
Enquanto isso, podemos acusar o mercado
gospel o quanto quisermos. Podemos apontar para os “mercenários e
vendilhões” do templo. Mas a verdade é que eles existem para atender uma
demanda que não vem deles. Eles existem porque há uma multidão que
busca cultuar o seu prazer, apenas, e não a Deus. E nós cristãos lotamos
qualquer praça, auditório, estádio ou casa de shows em busca de nós
mesmos.
Voltando ao texto de Stott, temos que
constantemente buscar o equilíbrio na vida cristã. A nossa busca será
constante, pois não somos capazes de nós mesmos o pecado. Só Cristo pode
o fazer. Enquanto vivermos essa vida, seremos escravos não da
consequência do pecado, mas da sua influência.
Que Deus nos ajude a perseverar numa peregrinação equilibrada ao cumprirmos o maior mandamento:
Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento. (Mateus 22.37)
***
Fonte: O blog do Andrew. Fonte: Púlpito Cristão.
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