Se
quisermos achar um evento que sirva como marco histórico para a origem
do famoso conceito reformado de Sola Scriptura (“Somente a Escritura”), a
resposta de Lutero na Dieta de Worms
(1521) imediatamente vem à mente. Ao ser perguntado, pela segunda vez,
se iria se retratar de suas posições expressas nas 95 teses, ele
respondeu: “A menos que eu seja convencido pelas Escrituras e pela
razão pura e já que não aceito a autoridade do papa e dos concílios,
pois eles se contradizem mutuamente, minha consciência é cativa da
Palavra de Deus. Eu não posso e não vou me retratar de nada, pois não é
seguro nem certo ir contra a consciência. Deus me ajude. Amém.” Em outras palavras, Lutero só aceitaria o que pudesse ser provado pelas Escrituras: “sola Scriptura”. Aceitando somente a Escritura, Lutero deduziu que a salvação era somente pela graça (sola gratia), somente pela fé (sola fide) na pessoa e obra de Cristo (solus Christus), redundando em glória somente a Deus (soli Deo gloria),
divergindo, assim, do que era ensinado na sua época e que era baseado
na tradição, bulas e declarações de concílios. Como a venda de
indulgências, por exemplo. Em outras palavras, o conceito de sola
Scriptura é fundamental para o edifício da teologia da Reforma.
Mas, esclareçamos. Como cristão reformado, quando eu uso a expressão Sola Scriptura
não estou negando que a Palavra de Deus, a princípio, foi transmitida
oralmente, antes de ser escriturada. Também não estou negando que Deus
se revelou à humanidade na natureza, por meio das coisas criadas
(revelação geral, embora não salvífica) e nem estou reduzindo a
atividade do Espírito Santo nos crentes ao momento de leitura da Bíblia.
Nem nego a necessidade de pastores, mestres e evangelistas. Eu também
não estou dizendo que a Bíblia é sempre clara em todas as suas partes e
menos ainda que ela é exaustiva.
Quando os cristãos reformados declaram Sola Scriptura!
eles estão dizendo fundamentalmente que a palavra que Deus falou
através dos profetas e dos apóstolos, na qual Ele se revelou e revelou
sua vontade para seu povo, se encontra agora somente nas Escrituras
Sagradas, e que esta revelação escrita é suficientemente clara em
matérias pertinentes à salvação e santificação do povo de Deus.
Em outras palavras, Sola Scriptura
significa que a única regra de fé e prática para os cristãos são as
Escrituras Sagradas do Antigo e do Novo Testamento, pela simples razão
de que elas, e somente elas, são inspiradas por Deus. A tradição oral,
os pronunciamentos dos concílios e líderes religiosos e as opiniões de
teólogos não são. Eles podem ser úteis em nossa compreensão das
Escrituras e das origens do Cristianismo, bem como nas aplicações de
seus princípios às questões de nossos dias, quando não contradizem as
Escrituras. Contudo, nenhum deles é a base e o fundamento para minha fé e
as minhas práticas. Assim, eu não tenho nenhum problema em aceitar uma
tradição oral desde que se possa demonstrar que ela tem origem no ensino
dos apóstolos. Da mesma forma, aceito os ensinos dos Pais da Igreja que
comprovadamente estão de acordo com os escritos do Novo Testamento.
É claro que não vamos encontrar o slogan Sola Scriptura
na Bíblia, pelo menos não como uma frase ou declaração. Mas existem
evidências claras o suficiente para aceitarmos que, ao dizer que sua
consciência estava cativa somente à palavra de Deus, Lutero estava
expressando um princípio amplamente exposto nas Escrituras. Acredito que
os textos abaixo deixam claro que já há nas próprias Escrituras uma
compreensão de que elas são inspiradas por Deus e que nelas Deus fala de
maneira autoritativa e suficiente para seu povo:
“Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim” (Jo 5.24).
“Na
verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não
estão escritos neste livro. Estes, porém, foram registrados para que
creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais vida em seu nome” (Jo 20.30-31).
“Nenhuma
profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca
jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens
[santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.20-21).
“Tu,
porém, permanece naquilo que aprendeste e de que foste inteirado,
sabendo de quem o aprendeste e que, desde a infância, sabes as sagradas
letras, que podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo
Jesus. Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a
repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o
homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa
obra” (2Tm 3.14-17).
“Ora, disse o SENHOR a Abrão: ... em ti serão benditas todas as famílias da terra (Gn 12.1-3) - Ora,
tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios,
preanunciou o evangelho a Abraão: Em ti, serão abençoados todos os povos” (Gn 12.1-3 com Gl 3.8) – para Paulo, a Escritura era o próprio Deus falando.
“Ouvindo
isto, unânimes, levantaram a voz a Deus e disseram: Tu, Soberano
Senhor, que fizeste o céu, a terra, o mar e tudo o que neles há; que
disseste por intermédio do Espírito Santo, por boca de Davi, nosso pai,
teu servo: ‘Por que se enfureceram os gentios, e os povos imaginaram
coisas vãs?’” (At 4.24-25 citando Salmo 2.1).
“E,
que Deus o ressuscitou dentre os mortos para que jamais voltasse à
corrupção, desta maneira o disse: E cumprirei a vosso favor as santas e
fiéis promessas feitas a Davi. Por isso, também diz em outro Salmo: Não
permitirás que o teu Santo veja corrupção” (At 13.34-35, Paulo citando o Salmo 16.10).
“Pois a Escritura declara: Não amordaces o boi, quando pisa o trigo. E ainda: O trabalhador é digno do seu salário” (1Tm 5.18, em que Paulo coloca um dito de Jesus [Lc 10.7] no mesmo nível das Escrituras do Antigo Testamento).
“Se
alguém se considera profeta ou espiritual, reconheça ser mandamento do
Senhor o que vos escrevo. E, se alguém o ignorar, será ignorado” (1Co 14.37-38).
“Dessarte, quem rejeita estas coisas não rejeita o homem, e sim a Deus, que também vos dá o seu Espírito Santo” (1Ts 4.8, Paulo se referindo ao seu ensino sobre santificação).
“Caso
alguém não preste obediência à nossa palavra dada por esta epístola,
notai- o; nem vos associeis com ele, para que fique envergonhado” (2Ts 3.14).
“Tende
por salvação a longanimidade de nosso Senhor, como igualmente o nosso
amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao
falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as
suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os
ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais
Escrituras, para a própria destruição deles” (2Pe 3.15-16, Pedro colocando os escritos de Paulo ao nível de Escritura).
“A
lei do SENHOR é perfeita e restaura a alma; o testemunho do SENHOR é
fiel e dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do SENHOR são retos e
alegram o coração; o mandamento do SENHOR é puro e ilumina os olhos. O
temor do SENHOR é límpido e permanece para sempre; os juízos do SENHOR
são verdadeiros e todos igualmente, justos” (SL 19.7-9).
“Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e, luz para os meus caminhos” (SL 119.105 – ver todo o Salmo 119).
“Quando
vos disserem: Consultai os necromantes e os adivinhos, que chilreiam e
murmuram, acaso, não consultará o povo ao seu Deus? A favor dos vivos se
consultarão os mortos? À lei e ao testemunho! Se eles não falarem desta
maneira, jamais verão a alva” (Is 8.19-20).
“Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão” (Mt 24.35).
“Se ele chamou deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra de Deus, e a Escritura não pode falhar” (Jo 10.35).
“Pois
tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a
fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos
esperança” (Rm 15.4).
“Porque
a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer
espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito,
juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos
do coração” (Hb 4.12).
“Eu,
a todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro, testifico:
Se alguém lhes fizer qualquer acréscimo, Deus lhe acrescentará os
flagelos escritos neste livro; e, se alguém tirar qualquer coisa das
palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte da árvore da
vida, da cidade santa e das coisas que se acham escritas neste livro” (Ap. 22.18-19).
Há
outras, mas estas bastam para mostrar que: (1) há uma clara consciência
do conceito de Escritura como sendo o meio pelo qual Deus fala; (2) as
Escrituras são consideradas, portanto, como a autoridade final nas
coisas concernentes a Deus e nossa relação com ele e com os outros; (3)
que nenhuma outra fonte de autoridade pode ser colocada ao lado das
Escrituras.
É
em passagens assim que os cristãos reformados se baseiam para dizer que
é somente nas Escrituras que Deus nos fala de maneira autoritativa e
final. E portanto, nossa consciência está cativa somente a elas. Enfim,
Sola Scriptura.
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