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O caso de Corinto - 1Coríntios 6.1-8
A cultura de nosso país tem mudado bastante de algumas décadas para cá no que tange a reivindicação dos direitos. Por pequenas coisas ações são movidas e existe uma infinidade de siglas que traduzem a amplitude do direito do cidadão. Por causa disso, as próprias empresas prestadoras de serviços criaram órgãos internos para atenderem seus clientes, as ouvidorias ou então o trabalho de um ombudsman.
De tanta ênfase que se tem dado ao direito individual não será possível que preceitos ainda mais importantes que esse sejam colocados de lado? Vamos estudar hoje como a busca pelo direito pode atrapalhar a comunhão da igreja.
Ganância disfarçada de justiça
É bastante comum ouvirmos de crentes que tem disputas contra outros a seguinte declaração: “Só desejo que a justiça seja feita”. Existe, porém, muitas afirmações bíblicas que nos fazem desconfiar das verdadeiras intenções humanas. Segundo a Palavra de Deus, o coração humano é desesperadamente corrupto (Jr 17.9); os nossos projetos e até pensamentos estão distantes do que Deus planeja em sua santidade (Pv 16.1; Is 55.8-9); e que há pecados praticados que passam desapercebidos de nossas consciências viciadas (Sl 19.12).
Por causa dessa tramoia que nossa carne prega é que foi tão importante para a Igreja de Corinto ser confrontada com as intenções reais de se contestar alguém na justiça comum. O que geralmente se busca com essa atitude senão uma compensação financeira por um suposto dano sofrido? Vê-se, então, que a “sede de justiça” nada mais é do que uma máscara para disfarçar um profundo amor ao dinheiro e desejo de vingança.
Há, portanto, no direito inato de todo cidadão (de usar a justiça comum quando se sentir prejudicado de alguma forma) uma série de quebras dos mandamentos de Deus e dentre esses, a constante busca pelo bem do próximo; um princípio muito mais importante que a procura pelo dinheiro ou o desejo de vingança.
Jesus disse que deveríamos fazer o bem até mesmo aos nossos inimigos bem como amá-los, bendizê-los e orar por eles (Lc 6.27-28). Tiago rumina essa ideia lembrando que devemos amar o próximo como a nós mesmos sem qualquer acepção de pessoas (Tg 2.8-9), ou seja, sem mesmo levar em consideração se o próximo é um crente ou um ímpio. Talvez por isso Paulo tenha apresentado um caso tão abrangente em nosso texto básico: “Atreve-se algum de vós, tendo negócio contra outro…” (1Co 6.1) Ele não especifica se esse “outro” é crente ou não[1] porque não vem ao caso; a regra é a mesma.
Seria possível aos coríntios acionar a justiça dos ímpios sem quebrar o mandamento acima? Será que algum dia encontraremos alguém que diga: “Meu irmão eu amo você em Jesus por isso já perdoei sua ofensa em meu coração mas mesmo assim vou entrar na justiça para requerer uma compensação em dinheiro”. Seria isso coerente?
Paulo começa o versículo com o verbo “atrever”. De fato, esse falso desejo por justiça é uma tremenda arrogância, atrevimento e audácia. É como se Paulo dissesse: “Como alguém que se diz crente pôde ter coragem de fazer algo assim?”
A suficiência da Igreja
O final do primeiro verso de 1 Coríntios 6, apresenta uma indignação da parte do apóstolo Paulo pelo fato de o caso controverso ter sido apresentado “aos injustos e não perante os santos” (1Co 6.1). Essa mesma repulsa é confirmada no verso 6: “Mas irá um irmão a juízo contra outro irmão, e isto perante incrédulos!” (1 Co 6.6).
Um cristão deveria ter a consciência (“ou não sabeis… [v.2]) que a atitude mais sensata diante de uma controvérsia na igreja era procurar irmãos na fé e não os ímpios.
“Para vergonha vo-lo digo. Não há, porventura, nem ao menos um sábio entre vós, que possa julgar no meio da irmandade?” (1 Co 6.5). Essa declaração indica que até mesmo um único cristão, com uma mente cristão madura, já seria suficiente para intermediar qualquer disputa. Aliás, embora apareça muitas vezes a palavra “julgar” nesse texto, o espírito do significado está muito mais ligado a “mediação” do que “julgamento”. Nas questões terrenas podemos ser mediadores uns dos outros e assim cumprirmos a bem-aventurança que nos manda ser pacificadores (Mt 5.9).
Em uma certa igreja, dois irmãos na fé eram sócios em um negócio. Depois de um certo tempo de sociedade acharam por bem dissolvê-la mas não conseguiram acordar em que termos isso se daria. Imbuídos de sabedoria, levaram o caso ao conselho da igreja e após exporem cada um a sua versão pediram que aqueles líderes se pronunciassem (mediassem) a respeito e a opinião dada seria acatada por ambos. Assim foi feito. Um ou o outro talvez não tenha recebido o tanto que gostaria mas com certeza ambos puderam sentir paz com a decisão tomada.
A união que existe na igreja de Cristo deveria torná-la em um fórum suficiente para os irmãos resolvem seus problemas. As instâncias da justiça comum “não têm nenhuma aceitação na igreja” (1Co 6.4b), ou seja, de nada valem para a igreja. A “justiça dos homens” recentemente nos deu um exemplo claro disso ao proibir pais de imporem castigos físicos aos seus filhos. Essa mesma justiça tem autorizado o aborto, desconsiderado o adultério como crime e está em vias de não só aceitar a união civil homossexual mas também capacitá-los a adoção. De fato, a justiça humana nada tem a ver com a justiça de Deus e por causa dessa diferença abismal que os apóstolos disseram: “Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens.” (At 5.29b).
Os coríntios são lembrados por Paulo a respeito do papel que os crentes ocuparão na vida eterna. “O absurdo da situação em Corinto torna-se mais claro quando a pessoa reconhece que, na consumação da história (mas não antes; 5.12,13), os crentes participarão, juntamente com Cristo, no julgamento não somente dos incrédulos, mas também dos anjos. Até o menos qualificado entre os crentes de Corinto estava em melhor posição do que um incrédulo para arbitrar disputas na igreja local.” [2]
O Testemunho diante do mundo
Levando as questões internas a justiça comum, os coríntios estavam literalmente lavando suas roupas sujas em público. Segundo Paulo, esse comportamento da comunidade cristã se traduzia em uma “completa derrota” (1Co 6.7). Primeiro por causa da evidente falta de amor cristão recíproco e segundo, por causa do testemunho cristão: em vez de a igreja julgar os valores do mundo o inverso é que se dá. O mundo tem que interferir na convivência da igreja para que esta tenha paz. De fato, a igreja tem que se sentir derrotada com isso.
Simon Kistemaker escreveu com bastante propriedade: “Para Paulo, o propósito do Cristianismo é permear o mundo todo, influenciá-lo e mudá-lo de acordo com as normas do evangelho. Mas Paulo nota que em Corinto está acontecendo o contrário. O mundo está penetrando na comunidade cristã para amoldá-la aos padrões do mundo. Prova disso é a questão das disputas que não são resolvidas dentro dos limites da comunidade cristã, mas levadas diante de juízes mundanos. Os irmãos cristãos que levam suas causas para não-cristãos estão tornando a igreja um motivo de galhofa no mundo gentio.” [3] Na ânsia de derrotar um outro irmão a fim de obter vantagem, essa pessoa derrotava a si mesma como parte do corpo de Cristo.
Aquilo que é mais valioso
A prova maior de que os coríntios litigiosos estavam negligenciando o amor se evidenciava no fato de não perceberem que “pessoas” é melhor do que “coisas” e “o bem do Corpo" (igreja) é melhor do que “satisfação pessoal”.
A Unidade da Igreja é mais importante do que o sofrimento pela injustiça.
Paulo questiona os coríntios: “Por que não sofreis, antes, a injustiça?” (1Co 6.7b). Diante da vergonha que é para a igreja a desunião de seus membros ao ponto de um acionar o outro na justiça comum, Paulo pergunta: “Por que não é preferível ser tratado injustamente”? Jesus salientou bem que quando alguém impingisse injustiça ao crente este deveria conformar-se e alegrar-se: “Ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra; e, ao que tirar a tua capa, deixa-o levar também a túnica; dá a todo o que te pede; e, se alguém levar o que é teu, não entres em demanda.” (Lc 6.29-30). A Palavra de Deus nos autoriza protegermos nosso patrimônio (afinal somos mordomos de Deus) mas não ao ponto de amarmos mais as posses do que nossa própria vida, a do próximo ou o próprio Deus. Se o crente não tem coragem de dispor do que tem então é porque nisso está seu coração. A história do encontro de Jesus com o jovem rico ilustra bem isso (Mc 10.17-22).
A Unidade da Igreja é mais importante do que o sofrimento pelo prejuízo.
A segunda pergunta de Paulo foi: “Por que não sofreis, antes, o dano?” (1Co 6.7b); ou seja: “Não seria melhor ficar com o prejuízo?” (NTLH). A injustiça agora revela-se em prejuízo.
Ninguém melhor do que Paulo para falar de abnegação. Se você pudesse fazer uma meça da vida financeira de Paulo antes e depois de sua conversão, você saberia dizer se Paulo se tornou mais rico ou mais pobre? A Bíblia não trata desse assunto mas em mais de uma oportunidade ele confessa que já teve experiência de fome e escassez (Fp 4.12) bem como prisões, perigos, naufrágios, trabalhos, fadigas, sede, frio e nudez (2Co 11.24-27).
A igreja é o Reino de Deus visível nesse mundo caído. O Reino de Deus não tem preço, por isso, ele é comparado a uma pérola de grande valor ou a um campo com um tesouro. Os coríntios deveriam por tudo de lado em favor da preservação da igreja de Deus da mesma forma que um colecionador de pérolas vende todas que tem para comprar a mais valiosa (Mt 13.45,46) ou alguém que achando um tesouro vende tudo o que tem para comprar o campo no qual esse tesouro se encontra (Mt 13.44).
Conclusão
De acordo com a exortação de Paulo a comunhão do Corpo de Cristo é mais importante que qualquer coisa. Para esse fim devemos suportar, então, injustiças pessoais e até mesmo sermos roubados.
Nisso se manifesta o testemunho do cristão pois é bastante incomum um ímpio abrir mãos de bens materiais em detrimento de outras pessoas; somente com Cristo na direção de nossa vida isso pode ser possível.
Por outro lado, se preferirmos contender a abrir mão é porque ainda não entendemos o espírito do Evangelho e do próprio ministério de nosso Redentor Jesus Cristo.
Nem sempre as contendas entre os membros da igreja chegam aos tribunais mas nem por isso elas são menos prejudiciais à união da igreja. Tendo isso em conta, procure em seu coração as desavenças pendentes e tome a decisão de consertá-las sempre com o espírito de abrir mão do que por direito deveria ser seu. Se preciso chame o pastor ou qualquer outro líder sábio (1Co 6.5) para ser o mediador.
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Notas:
[1] A maioria dos estudiosos entende que a contenda que Paulo tinha em mente se deu entre dois crentes membros da igreja de Corinto.
[2] Bíblia de Genebra, comentário a 1Coríntios 6.2-5
[3] Simon J. Kistemaker, 1 Coríntios, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p.251.
Sobre o autor: Rev. Fernando de Almeida é Ministro Presbiteriano e capelão da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano "Rev. José Manoel da Conceição"; Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pós Graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília; Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorando em Letras. Escritor de revistas para Escola Dominical pela Editora Cultura Cristã.
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