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Há mais de uma década, um artigo controvertido em Christianity Today anunciou o surgimento do teísmo relacional. O artigo “Evangelical Megashift” foi escrito por Robert Brown, um proeminente teólogo canadense. Brown descreveu uma mudança radical no horizonte evangélico – uma “mega mudança” em direção a um “novo modelo” de pensamento, distanciado do teísmo clássico (que Brown rotulou de “velho modelo” teológico). O que o artigo destacava era o movimento que hoje é conhecido como visão “relacional” de Deus, ou“teísmo relacional”.
Embora o próprio Brown seja um defensor do teísmo relacional, seu artigo de 1990 nem exaltou nem condenou essa mega mudança. Nele, Brown procurou apenas descrever como a nova teologia era radicalmente diferente do conceito evangélico de Deus, propondo novas explicações para conceitos bíblicos como ira divina, justiça divina, julgamento e expiação – e assim por diante, sobre cada aspecto da teologia evangélica.
A questão de uma Divindade manipulável
O artigo de Brown retratou o novo modelo teológico em termos benevolentes. Ele viu o movimento como uma tentativa de remodelar algumas das mais difíceis verdades da Escritura, empregando paradigmas mais amigáveis para explicar Deus.
De acordo com Brown, o velho modelo teológico coloca Deus sob uma luz severa. No evangelicalismo do velho modelo, Deus é um magistrado rigoroso cujo julgamento é um veredito cruel e inflexível. O pecado é uma ofensa contra sua lei divina; a ira de Deus é a fúria de um soberano indignado, é uma retribuição sem alento pelo pecado; e a expiação pode ser adquirida somente se o pagamento total pela penalidade judicial do pecado for feito.
No novo modelo teológico, contudo, o modelo de Deus como magistrado é colocado de lado em favor de um modelo mais congênito – o modelo de Deus como um Pai amoroso. Os pensadores do novo modelo querem eliminar as conotações negativas associadas com as difíceis verdades bíblicas, tais como a ira divina e a justa retribuição de Deus contra o pecado. Dessa forma, eles simplesmente redefinem esses conceitos utilizando modelos que evocam “a ternura de um relacionamento familiar”. Por exemplo, eles sugerem que a ira divina nada mais é que um tipo de desprazer paterno que inevitavelmente faz com que Deus nos dê encorajamentos amorosos. Deus é um “juiz” somente no sentido dos juízes do Antigo Testamento (como Débora, Gideão ou Samuel) – significando que ele é um defensor de seu povo, e não uma autoridade que move um julgamento contra ele. O pecado é simplesmente um “mau comportamento” que rompe a comunhão com Deus, e a solução para ele é sempre correção, nunca retribuição. Nem mesmo o inferno é realmente uma punição, mas a maior expressão da liberdade dos pecadores, porque, de acordo com o pensamento do novo modelo, “a destinação ao inferno não é uma sentença judicial”– de forma que, se alguém vai para lá, é puramente por escolha própria.
Foram-se todos os vestígios da severidade divina. Deus foi diminuído e domesticado. De acordo com o novo modelo teológico, Deus não deve ser pensado como justamente indignado contra a desobediência de suas criaturas. Aliás, o artigo de Brown tinha um subtítulo: “Por que você pode não ter ouvido sobre ira, pecado e inferno recentemente”. Ele caracterizou o Deus do novo modelo teológico como uma divindade mais gentil, amorosa e amigável.
Além disso, um dos principais objetivos da mega mudança promovida pelo teísmo relacional parece ser eliminar completamente o temor do Senhor. De acordo com Brown, “ninguém negaria que é mais fácil se relacionar com um Deus percebido como mais gentil e amoroso”.
Logicamente, o Deus do velho modelo teológico também é incessantemente gracioso, misericordioso e amoroso (um fato que não poderia ser percebido na grosseira caricatura que os defensores do novo modelo pintam quando descrevem “o velho modelo da ortodoxia”). Mas os teólogos do velho modelo ensinam que há mais no caráter de Deus do que beneficência. Deus também é santo, justo e irado contra os ímpios todos os dias (Sl 7.11). Ele é ardente em sua indignação contra o pecado (cf. Sl 78.49; Is 13.9-13; Sf 3.8). O temor do Senhor é a própria essência da verdadeira sabedoria (Jo 28.28; Sl 110.10; Pv 1.7; 9.10; 15.33). O “temor do Senhor” é até mesmo motivo para o evangelismo (2Co 5.11). “Nosso Deus é fogo consumidor” (Hb 12.29; cf. Dt 4.24) e “terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo” (Hb 10.31).
Contudo, os teístas relacionais estão determinados a eliminar ou deixar de explicar toda característica do caráter de Deus exceto aquelas que são instantaneamente “percebidas como gentis e amorosas”. Eles não querem se comprometer com um Deus que exige ser temido. Sua teologia tem o objetivo de construir uma divindade manipulável, um deus com o qual “é mais fácil se relacionar” – um ser semi-divino que foi despido de todas as características da glória e da majestade divina que possam provocar qualquer temor ou medo na criatura. Eles o transformaram em um gentil e inofensivo criado celestial.
Redefinindo a expiação
Acima de tudo, o deus do novo modelo nunca exige qualquer pagamento pelo pecado como uma condição para o perdão. De acordo com o novo modelo, se Cristo sofreu por nossos pecados, foi somente no sentido de que ele “absorveu nosso pecado e suas consequências” – certamente não que ele tenha recebido qualquer punição imposta por Deus em nosso lugar na cruz. Ele simplesmente tornou-se participante conosco no problema humano de dor e sofrimento (afinal, a “dor e o sofrimento” terrenos são exatamente as piores consequências do pecado que os teólogos do novo modelo podem imaginar).
O ponto mais perturbador no artigo de Robert Brown é uma observação dispensável quase incidental já perto do fim, na qual ele afirma que, de acordo com a teologia do novo modelo, “a cruz não foi um pagamento judicial”, mas simplesmente uma expressão visível, espaço-temporal, de como Cristo sempre sofreu por causa de nosso pecado. Em outras palavras, de acordo com o novo modelo teológico, a obra expiatória de Cristo não foi verdadeiramente substitutiva; ele não fez um pagamento de resgate pelo pecado; nenhuma culpa foi imputada a ele; Deus não o puniu como um substituto pelos pecadores. Nada de seu sofrimento na cruz foi administrado por Deus. Em vez disso, de acordo com o novo modelo, expiação significa que nossos pecados são simplesmente “perdoados” pelo simples exercício da tolerância amorosa de Deus; nosso relacionamento com Deus é normalizado; e Cristo “absorveu as consequências” de nosso perdão (o que provavelmente significa que ele sofreu a indignidade e vergonha que acompanham a resignação à ofensa).
Então o que significa a cruz, de acordo com os teólogos do novo modelo? Muitos deles dizem que a morte de Cristo foi nada mais que uma exposição pública das terríveis consequências do pecado – de forma que, oferecendo seu sangue para satisfazer a justiça de Deus, Cristo estava apenas demonstrando os efeitos do pecado para cumprir uma percepção pública de justiça. Outros teólogos do novo modelo vão ainda mais além, virtualmente negando a necessidade de qualquer tipo de resgate pelo pecado. Além disso, todo o conceito de um pagamento para expiar a culpa do pecado é um non sense se os teístas relacionais estiverem certos.
Então o que significa a cruz, de acordo com os teólogos do novo modelo? Muitos deles dizem que a morte de Cristo foi nada mais que uma exposição pública das terríveis consequências do pecado – de forma que, oferecendo seu sangue para satisfazer a justiça de Deus, Cristo estava apenas demonstrando os efeitos do pecado para cumprir uma percepção pública de justiça. Outros teólogos do novo modelo vão ainda mais além, virtualmente negando a necessidade de qualquer tipo de resgate pelo pecado. Além disso, todo o conceito de um pagamento para expiar a culpa do pecado é um non sense se os teístas relacionais estiverem certos.
Dessa forma, os teólogos do novo modelo modificaram drasticamente a doutrina da expiação de Cristo, e nesse processo eles formaram um sistema que em nenhum sentido é verdadeiramente evangélico, mas é um repúdio do núcleo da singularidade do evangelho. Realmente não é exagerado dizer que sua doutrina rala e franzina da expiação oblitera o verdadeiro significado da cruz. De acordo com o teísmo relacional, a cruz é simplesmente uma prova demonstrativa da “espontaneidade para sofrer” que Cristo tinha – e, nessa visão aguada da expiação, ele sofre juntamente com o pecador, e não no lugar do pecador.
É minha convicção que esse erro é a raiz de uma árvore doente que nunca poderá gerar frutos (cf. Mt 7.18-20; Lc 6.43). A história da Igreja está cheia de exemplos daqueles que rejeitaram a natureza vicária da expiação de Cristo e, portanto, naufragaram na fé.
A redução sociniana
De fato, as inovações do “novo modelo” descritas por Robert Brown no artigo de 1990 – e os princípios distintivos do teísmo relacional, inclusive a posição dos teístas relacionais sobre a expiação – não são um “novo modelo”. Elas cheiram a Socinianismo, uma heresia que floresceu no século 16.
Assim como o moderno teísmo relacional, o Socinianismo do século 16 foi uma tentativa de livrar os atributos de Deus de tudo aquilo que parecia cruel ou severo. De cordo com o Socinianismo, o amor é o atributo governante de Deus. Seu amor essencialmente subjuga e anula seu desprazer pelo pecado. Sua bondade cancela sua ira. Portanto, de acorodo com os socinianos, Deus é perfeitamente livre para perdoar os pecados sem exigir pagamento de qualquer tipo.
Além disso, os socinianos argumentavam que a idéia de que Deus exige um pagamento pelos pecados é contraditória com a própria noção de perdão. Eles alegavam que os pecados podiam ser redimidos ou resgatados, mas não os dois. Se um preço deve ser pago, então os pecados não são verdadeiramente “perdoados”. E se Deus realmente deseja perdoar o pecado, então nenhum pagamento de resgate é necessário. Além disso, de acordo com o argumento sociniano, se um preço é exigido, então a graça não é mais graça do que qualquer transação legal, como o pagamento de um ticket de zona azul.
Inicialmente, esse argumento pode parecer sutilmente apelativo à mente humana, mas ele é completamente contrário ao que a Escritura ensina sobre graça, expiação e justiça divina. Ele depende de definições daqueles termos que ignoram o que a Escritura ensina claramente.
A graça não é incompatível com o pagamento de um resgate. Foi puramente pela graça que o próprio Deus (na Pessoa de Cristo) fez o pagamento que nós devíamos ter feito. De fato, de acordo o 1João 4.9, 10, essa é a expressão consumada da graça e do amor divino – que Deus prontamente enviou seu
Filho para suportar um mundo de culpa e morrer pelo pecado para propiciar sua justa indignação, satisfazer plenamente sua justiça, e, portanto, redimir os pecadores:
“Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” [grifo acrescentado] (1Jo 4.10). Cristo veio para ser “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29). Essa linguagem é uma clara referência ao sistema sacrificial do Antigo Testamento, deliberadamente evocando o conceito de expiação, que, no sistema sacrificial judaico, envolvia o pagamento de um preço de sangue, uma penalidade pelo pecado.
Além disso, qualquer pessoa que estude o que a Escritura tem a dizer sobre o perdão de pecados verá muito rapidamente que a aspersão do sangue de Cristo é o único fundamento sobre o qual os pecados podem ser perdoados. Não pode haver perdão a menos que um resgate sangrento seja pago. Lembre-se, isso é exatamente o que socinianos e teístas relacionais negam. Eles dizem que o perdão é incompatível com o pagamento de uma penalidade – os pecados que devem ser resgatados nunca foram remidos verdadeiramente. Mas Hebreus 9.22 refuta claramente essa alegação: “Sem derramamento de sangue não há remissão”.
Continua nos próximos dias...
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