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Da própria Escritura derivam-se alguns princípios para guiar nossa interpretação do texto. É óbvio que nós (seres pensantes) quando vamos a um texto vamos com uma “bagagem”. Nossos pressupostos, princípios que nos guiaram por toda a vida, filosofia própria, estilo de vida, modo de pensar, cosmovisão própria; tudo isso influencia-nos quando vamos entender um texto. Por isso, para termos consciência do que o Senhor nos deu como revelação, precisamos nos apegar a alguns princípios extraídos da própria Escritura, para que através deles, possamos nos esvaziar de nós mesmos e apendermos os ensinamentos do Senhor. Portanto, é de importância central termos consciência desses princípios.
Auto-interpretação das Escrituras
Como princípio primário e fundamento temos a auto-interpretação das Escrituras. Esse princípio nos ajudam a entender cada passagem, independentemente de ser uma passagem obscura ou não. A Bíblia interpreta ela mesma, esse é o significado. Todos os outros princípios dependem desse. Não há sentido em dizer: “passagens mais claras dão lugar a passagens mais escuras” se antes não entendermos que a Bíblia se auto-interpreta. A Confissão de Fé de Westminster tem uma organização bem interessante. No primeiro capítulo ela não fala sobre Deus, nem sobre o homem; ela inicia falando sobre a Escritura. A Escritura é que vai guiar o nosso entendimento quanto a Deus, quanto ao homem, ou seja lá qual for o assunto. Os reformadores seguiram esse princípio ao pé da letra; o lema deles era: “Scriptura, Scriptura interpres.”[1], ou seja, o melhor intérprete para a Escritura é ela mesma.
Esse fundamento nos leva a outro ponto. Precisamos ter consciência que nem a tradição, nem os Pais da Igreja, nem filosofia, nem qualquer outro tipo de influencia pode guiar nosso entendimento a respeito das Escrituras. Ela é a única fonte infalível, inerrante e autoritativa. A quem mais devemos recorrer senão ela?
Princípio da analogia da fé
Também definido como a harmonia geral das doutrinas bíblicas fundamentais, o princípio da analogia da fé não nos apresenta um conceito concreto, mas Walter Kaiser nos apresenta alguns que podem servir: (1) axiomas ou doutrinas centrais da fé cristã; (2) passagens bíblicas claras. Paulo Anglada a define como: “significa que uma passagem bíblica deve ser interpretada à luz do ensino geral das Escrituras.” [2]
Este princípio - dentre tantos benefícios para interpretação – nos impede de interpretar a Bíblia incoerentemente, fazendo-a contraditória. Se o ensinamento de um texto vai contrário ao ensinamento de outro texto de modo nenhum é porque a Bíblia é contraditória; pode ser culpa de tudo: tradição, capacidade humana, ou qualquer outras coisas, mas nunca a Bíblia. Faço das minhas palavras a de A. W. Pink: “Nenhum verso das Escrituras deve ser explicado de modo que conflite com o que é ensinado clara e uniformemente nas Escrituras como um todo, nossa única regra de fé e obediência. Isto requer do expositor não apenas um conhecimento do sentido geral da Bíblia mas também que ele se dê ao trabalho de reunir e comparar todas as passagens que tratam ou têm relação específica com o assunto diante de si, de modo que possa obter a intenção do Espírito acerca do assunto.” [3]
Com base nisso, segue-se alguns pontos que preciso ressaltar. Primeiramente o teólogo precisa ter uma boa base de Teologia Sistemática. Na Teologia Sistemática o estudioso terá uma visão geral das principais doutrinas bíblicas durante toda a Escritura. A Teologia Sistemática não se resume a uma passagem, não se resume a um capítulo, não se resume a um livro; a Teologia Sistemática estuda um determinado assunto durante toda a Bíblia. Mas por que isso é importante? A importância é que além de você saber as principais doutrinas Bíblicas (as que não devem ser quebradas de maneira nenhuma), você também saberá o que toda a Bíblia fala de um determinado assunto. Isso previne o estudioso de cometer qualquer contradição bíblica.
Por outro lado, é de suma importância que o estudioso tenha bastante conhecimento da Teologia Bíblica. Na Teologia Sistemática o teólogo terá um entendimento de uma doutrina de modo geral nas Escrituras; já na Teologia Bíblica o teólogo precisará entender a passagem de acordo com seu contexto. Em vez de estudar a doutrina que aquela passagem passa, ele estudará a passagem, o seu contexto, o seu capítulo e o seu livro. É de vital importância que o estudioso entenda a passagem de acordo com seu contexto. Para que ele extraia o ensinamento do texto, ele deve saber o que aquela passagem está falando naquele contexto.
Observando o ensinamento da Trindade como exemplo: em Mateus 3:16-17 diz: “Batizado que foi Jesus, saiu logo da água; e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito Santo de Deus descendo como uma pomba e vindo sobre ele; e eis que uma voz dos céus dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo.” Para que esse texto não entre em contradição e haja uma interpretação consistente, o teólogo primeiro deve observar a passagem de acordo com o seu contexto. Perguntas como: “onde a passagem se passa? O que está acontecendo? Entre outras...” deve guiar a interpretação Bíblica. Por outro lado, quando o significado é retirado do texto (nesse caso o ensinamento da Trindade) deve-se observá-lo de acordo com todo o ensino da Escritura a respeito dele. No caso do texto, utilizaremos a Teologia Sistemática para entendermos o ensino da Trindade durante toda a Bíblia. Portanto, na interpretação Bíblica a Teologia Sistemática e a Teologia Bíblica precisam ser harmonizadas e usadas como instrumento de entendimento.
Outro ponto importante é o conceito de progressividade da revelação. Precisamos ter em mente que a Bíblia não foi escrita apenas em um momento. Temos vários anos de história antes dela estar completa. Portanto, cada escritor estava no seu contexto. É importante então entendermos cada momento da revelação.
Princípio Cristológico
Paulo Anglada define esse princípio da seguinte forma: “afirma que Cristo é a chave para a interpretação bíblica, porquanto toda ela, inclusive o Antigo Testamento, se refere a Ele, se concentra Nele e dá testemunho Dele.” [4] Em resumo, esse princípio nos diz que Cristo é o centro de toda a Escritura; desde Gênesis até Apocalipse. Seguindo o modelo de Paulo Anglada podemos descrever a relação de Cristo com o texto da seguinte forma (citarei as principais):
(1) Perspectiva neotestamentária: a nossa visão do Antigo Testamento não deve-se reter apenas ao ensinamento histórico das narrativas. Precisamos fazer uma ponte com o Novo Testamento para entender qual o significado que Cristo tem em determinada passagem do Antigo Testamento. Vale salientar que esse tipo de interpretação não muda o sentido do texto, mas aprofunda até chegar a Cristo.
(2) Conceito de aliança: A Bíblia é formada por alianças. Alianças estas que Deus fez com seu povo para que ele se reconciliasse com o Criador. A Antiga Aliança é descrita por determinadas características. Como também a Nova Aliança tem as suas próprias características. As Escrituras descrevem como foi o decorrer dessas alianças, sempre enfatizando o seu mediador: Jesus Cristo. Os pactos vão ser bem mais claramente entendidos à luz daquele que é o Mediador.
(3) Peleja história entre o descendente da mulher e o descendente da serpente: para entender o personagem principal de toda a Escritura é necessário entendermos como ele surgiu. Em Gênesis já vemos a semente do evangelho. Cristo sendo profetizado através da descendência da mulher. Como entender o decorrer desta história se não apontarmos para Cristo?
(4) Relação entre os ofícios de Cristo. Cristo é tanto sacerdote, quanto rei, quanto profeta. A relação entre esses ofícios, a Escritura e as Alianças são inseparáveis. Cristo é sempre representado como rei na Escritura; Ele é o sacerdote supremo do Seu povo nos pactos; e Ele é o profeta de Deus diante de toda a terra. “Qualquer referência bíblica aos ofícios profético, sacerdotal e real deve ser interpretada à luz da sua relação com os ofícios de Cristo”, diz Paulo Anglada. [5]
Tipologia
Tipologia é o estudo de pessoas, eventos, objetos no Antigo Testamento (tipos) que prefiguram o há de acontecer (antítipo), ou prefigura algo no futuro. Por exemplo: no Antigo Testamento o sacrifício do povo de Deus era feito através do cordeiro. No Novo Testamento Jesus Cristo “é o cordeiro que tira o pecado do mundo.” Portanto, o cordeiro é a prefiguração do Cristo vivo. O cordeiro é o tipo e Jesus Cristo é o antítipo.
Os “tipos” tem suas características para que ele possa ser identificado, elas são:
(1) Elemento de relação, semelhança ou correspondência: Para que uma pessoa, evento ou instituição seja interpretada como tipo, deve haver um relacionamento de semelhança entre a pessoa , evento ou instituição. Esse ponto é fundamental para a observação da tipologia e sua identificação. Devemos sempre perceber as semelhanças e a relação entre o tipo e o antítipo.
(2) Elemento histórico. Há uma diferença profunda entre tipologias e parábolas. Parábolas não são consideradas tipologias apesar de terem alguma relação. A parábola é mais caracterizada pela correspondência do que pela tipologia. A tipologia tem um caráter histórico no que diz respeito a seu entendimento. Por exemplo, os personagens do Antigo Testamento como Adão, Isaque, Jacó podem ser considerados como tipologias de Cristo, isso porque além da relação de semelhança, é também observado o caráter histórico dessas passagens.
(3) Elemento profético ou prefigurativo. A tipologia também pode ser considerada profética, isto é, sempre intimamente relacionada com um acontecimento futuro. Isso se dá normalmente por conta da Antiga Aliança, onde suas tipologias sempre apontam para algo no futuro, ou seja, para a Nova Aliança. Também considerada prefigurativa por figurar algo futuro e sempre uma relação de semelhança.
(4) Elemento de progresso ou elevação histórica. Como bem sabemos a história da salvação da Escritura é passada de forma progressiva, ou seja, a revelação foi escrita ao longo do tempo, e não pronta num momento específico. Com base nisso podemos afirmar que a tipologia se caracteriza por sempre - dentro desse progresso de revelação – observar a construção e a relação entre personagens ou instituições ou seja lá qual foi o item tipológico.
(5) Intenção divina. Paulo Anglada afirma: “Para que uma pessoa, instituição ou evento histórico seja considerada uma tipológica de realidades futuras, deve haver ainda evidências bíblicas de que Deus realmente tencionou empregá-las como tal.”[6] Esse, particularmente, creio que é o ponto principal. Tudo se baseia na intenção do Senhor. Todas essas características vão estar baseada nesta: foi a intenção do Senhor mostrar determinada pessoa, evento ou instituição histórica como tipológica?
Princípio da interpretação de passagens obscuras
Esse princípio é derivado do primeiro que estudamos (Auto-interpretação das Escrituras). A principal ideia aqui se refere a como vamos entender um passagem que, por si só, não é tão fácil de ser entendida. É aí que entra esse princípio. A partir do momento que temos uma passagem difícil de ser entendida o que precisamos fazer para obter desta passagem o ensino que ela nos traz de forma clara? Segundo o princípio isso é feito através de textos paralelos.
Através dos textos paralelos é possível fazermos a interpretação correta de algum texto obscuro. Normalmente esses textos paralelos são encontrados em textos do mesmo autor, tonando assim o sentido da passagem obscura mais clara. Portanto, devemos interpretar as passagens obscuras à luz das passagens mais claras.
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Notas:
¹ Introdução à Hermenêutica Reformada, Paulo Anglada, Ed. Knox, pág. 165.
² Introdução à Hermenêutica Reformada, Paulo Anglada, Ed. Knox, pág. 168.
³ Interpretation of the Scripture, Arthur W. Pink.
4 Introdução à Hermenêutica Reformada, Paulo Anglada, Ed. Knox, pág. 179.
5 Introdução à Hermenêutica Reformada, Paulo Anglada, Ed. Knox, pág. 185.
6 Introdução à Hermenêutica Reformada, Paulo Anglada, Ed. Knox, pág. 194.
Fonte: Cristianismo Verdadeiro
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