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Há algum tempo a Missão Integral (MI) tem sido objeto de controvérsia nos círculos conservadores do evangelicalismo brasileiro. De um lado estão aqueles que a rejeitam e a criticam, alegando que ela seria uma versão protestante da Teologia da Libertação. Isto é, para eles a MI seria uma tentativa de compreensão da missão da igreja por um viés filosófico-sociológico marxista, razão pela qual, na prática, desviaria o foco da missão da igreja para o engajamento político-social. De outro lado, existem aqueles que a defendem e aderem a ela, principalmente sob a alegação de que a igreja teria passado por uma espécie de achatamento em sua concepção de missão, reduzindo o alcance da missão da igreja ao aspecto espiritual da vida humana, e a MI permitiria uma ampliação necessária. Ou seja, ela possibilitaria uma visão da missão da igreja como um movimento em direção à integralidade da vida humana.
Devemos considerar a legitimidade da preocupação que tem levado algumas pessoas a aderirem à MI. De fato, não são poucas as igrejas que nutrem uma perspectiva dualista da realidade, sobretudo da pessoa humana. E, por consequência, vivenciam sua missão de modo reducionista, negligenciando oportunidades de aplicação do evangelho a outras esferas de nossa existência, que não a relativa à fé. Parece mesmo faltar a muitos pastores e igrejas uma compreensão da abrangência do impacto da missão da igreja. Contudo, o que tem acontecido recentemente com a MI no Brasil não é muito diferente e parece fortalecer o argumento daqueles que a tem rejeitado. Muitos pastores e igrejas que aderiram à MI parecem também estar sofrendo de uma prática reducionista.
Eles ficam tão fascinados com o engajamento político-social que acabam por atribuir a essa tarefa um caráter de centralidade, para não dizer de exclusividade.
A percepção desse reducionismo tem sido compartilhada até mesmo por alguns dos proponentes da MI, como é possível verificar no texto a seguir:
O paradigma da missão integral, movimento da missão integral, ou teologia da missão integral, popularizado após o Congresso Internacional de Evangelização Mundial realizado em Lausanne, Suiça, em 1974, ganhou as ruas no Brasil somente depois que o Pacto de Lausanne foi publicado em português, dez anos após sua elaboração. Desde então a expressão missão integral ficou restrita ao debate a respeito da relação entre evangelização e responsabilidade social, e chegou aos nossos dias tão reduzido que qualquer igreja que tem uma creche acredita estar “fazendo missão integral”. (...) Observe que alguém facilmente diria que um projeto social está relacionado com missão integral, mas dificilmente consideraria um encontro de casais realizado num hotel 5 estrelas como um projeto de missão integral. A organização de um centro comunitário é imediatamente percebida como ação de missão integral, mas um sarau com muita música e leituras de Fernando Pessoa e Adélia Prado exigiria muita explicação para que fosse associado à missão integral. O senso comum diria que o médico que dedica um final de semana para trabalho voluntário numa comunidade da periferia da cidade está fazendo missão integral, mas diria que o mesmo médico, cobrando R$ 700,00 por uma consulta em seu consultório, está realizando seu trabalho secular (não religioso), ou, no máximo, ganhando dinheiro para financiar projetos de missão integral. É urgente ampliarmos o horizonte de reflexão.
Extrapolar os limites definidos pelo debate evangelização /responsabilidade social e mergulharmos nas implicações das relações sagrado/profano e religioso/não religioso para a vivência da espiritualidade cristã pessoal e comunitária.[1]
É curioso perceber, no entanto, que esse reconhecimento não acontece sem que a suposta integralidade original da MI seja defendida. Geralmente, ele vem acompanhado do argumento de que esse reducionismo seria, para usar as palavras do autor acima, “uma distorção do conceito em seus termos originais”.[2]
Mas, afinal, o reducionismo verificado na prática de igrejas brasileiras que têm
aderido à MI seria de fato um desvio da proposta original ou um desdobramento natural originalmente gestado? Essa é a pergunta que pretendemos responder na parte inicial deste artigo, e que possui uma importante implicação para o debate inicialmente mencionado. Caso a segunda alternativa seja verificada, nossa hipótese é a de que teremos razões para questionar a contribuição da MI para a efetiva ampliação de nossa concepção de missão. O propósito do artigo, contudo, não se limita a esse movimento reativo. Além de levantar este questionamento queremos sugerir que a tradição calvinista, mais especificamente tal qual expressa no neocalvinismo holandês, oferece melhores condições para a compreensão da missão da igreja. Apresentar as razões desta sugestão é o que pretendemos fazer na segunda parte do texto.
1. missão integral?
A expressão Missão Integral foi cunhada por volta da década de 1970 por membros da Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL, na sigla em espanhol), para descrever uma compreensão da missão cristã que abrange tanto a proclamação quanto a demonstração do evangelho por meio da ação social.[3]
Geralmente a MI é apresentada como um chamado à integralidade; uma defesa da missão da igreja como um movimento em direção à “pessoa toda, com todo o evangelho, em todo o seu contexto social e cultural”.[4] É este chamado que tem atraído muitos evangélicos conservadores, mesmo no círculo reformado. É também ele que pretende ser, de alguma forma, assegurado pelo argumento de que o reducionismo prático da MI seria um desvio do propósito original.
Contudo, há razões para questionar este chamado à integralidade. Isso, por que a apropriação do adjetivo “integral” pela perspectiva que estamos analisando não parece estar relacionada ao significado semântico do termo – todo, inteiro, completo – mas à tentativa de superação de um dualismo específico, que se refere ao exercício da missão da igreja enquanto instituição: o dualismo evangelização/ação social. Oliva, citando Nóbrega, afirma que o uso do qualificativo integral tem como objetivo “lembrar as igrejas de que elas não devem optar por um dos polos opostos – salvação pessoal/espiritual ou responsabilidade social”.[5] Para Carvalho, esse dualismo teria sido o ponto central de discussão do Congresso de Lausanne, importante marco da MI, e também o responsável pela elaboração do conceito.
Entre as questões que o congresso de Lausanne procurou responder, talvez a mais importante seja a que focalizou a relação entre evangelização e responsabilidade social. O debate sobre essa relação levou à formulação de um conceito mais amplo de missão cristã, expresso no conceito de missão integral, englobando tanto a evangelização quanto a responsabilidade social, sendo ambas inter-relacionadas e essencialmente distintas. A partir daí, todas as discussões em torno da missão integral passaram a focalizar sua fundamentação e aplicação à luz da prática pastoral e missionária.[6]
Como é possível verificar, embora se utilize de um adjetivo cujo significado semântico aponta para a abrangência, a discussão da MI gira em torno de uma questão específica: o engajamento da igreja com a ação social e a relação entre este engajamento e a evangelização. A interpretação e referência ao engajamento social como um movimento voltado à integralidade revela sua semente reducionista.
É provável que esse reducionismo seja fruto da construção dialética da MI, o que a teria conduzido, pelo menos em parte, a uma síntese[7] com um paradigma filosófico-sociológico reducionista: o materialismo histórico – que reduz a dinâmica da realidade ao aspecto socioeconômico.[8] Descrevendo o ambiente intelectual que teria forjado a MI, Gondim afirma claramente seu caráter dialético, argumentando que ela teria se originado do desejo dos evangélicos de “fazer nascer uma teologia que se aventurasse em dialogar com as ciências e a filosofia”.[9] E sugere seu caráter sintético ao relacioná-la à Teologia da Libertação e ao apontar as Fraternidades Teológicas Latino-Americanas como fermentadoras do pensamento que lhe deu origem.[10] Mais que uma simples sugestão pode ser encontrada na argumentação de Sanches, que relaciona as origens da MI a um movimento denominado ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina), fundado na década de 60, e que, em suas próprias palavras, “elaborou uma síntese entre o protestantismo e o marxismo, por meio de um fecundo diálogo entre a Teologia e as Ciências Sociais, a fim de interpretar o contexto de crise política vivida pelo povo latino-americano”.[11]
Se, por um lado, esses apontamentos não são suficientes para afirmar um compromisso original generalizado da MI com o projeto ideológico marxista, por outro, eles nos oferecem fortes indícios da influência do materialismo histórico na atmosfera intelectual que forjou tal pensamento. É ilustrativa dessa influência certa ênfase exclusivista nos impactos socioeconômicos do evangelho. Em palestra ministrada no Fórum Jovem de Missão Integral, Ramos sustenta:
Então o que foi que mudou com a chegada do reino? Mudou a economia. Agora, a proposta é a solidariedade e o alvo é a igualdade. Mudou a relação de trabalho. Porque agora, o trabalhador tem de ser o primeiro a desfrutar do resultado do seu trabalho. Mudou a relação política. Agora, o “sujeito” não é eleito para assumir o poder, o “sujeito” é eleito para assumir o serviço. Se a Igreja ganha essa consciência, a Igreja se torna profeta dos profetas, se torna o grande arauto da justiça.[12]
É também ilustrativa desta relação a apropriação e aplicação de conceitos próprios do materialismo histórico à obra de Cristo. Na palestra anteriormente citada, por exemplo, a vinda do reino de Cristo por ocasião de sua primeira vinda é descrita em termos de “ruptura” e “revolução”.[13] Finalmente, esta relação e influência podem ser percebidas pela constante crítica da MI à tradição teológica de pensamento e sua consequente defesa de “uma teologia legitimamente continental”,[14] o que se assemelha ao caráter antitradicionalista do materialismo histórico.[15]
O resultado dessa relação é não apenas a falta de um conceito de integralidade, mas de lastro histórico-teológico para localizar a questão da missão da igreja dentro de um escopo maior de pensamento,[16] o que culmina na impossibilidade de superação do dualismo inicialmente verificado: o dualismo evangelização/ação social na missão institucional da igreja. Carlos Antônio Barro sustenta que a partir de Lausanne é possível verificar três posições mais definidas dentro da MI sobre a relação entre os polos desse dualismo: uma mais conservadora, que enfatiza a evangelização como tarefa principal; uma mais moderada, que começa a pensar em integrar a busca pela justiça social à missão da igreja, e uma terceira que elimina prioridades e vê evangelização e ação social como tarefas complementares.[17] Esta última é a posição mais comumente defendida pela MI na atualidade, e mesmo ela não promove a superação do dualismo evangelização/ação social. Pois a defesa de que a igreja deve fazer uma coisa e outra, embora promova uma aproximação dos dois polos, os mantém separados, o que significa, no fim das contas, a manutenção da dualidade.
Nossa suspeita inicial, portanto, é que o reducionismo observado na prática da MI, ao invés de desvio, seria a consequência natural de sua construção dialética e aproximação sintética de um paradigma reducionista.
Consequentemente, seria possível questionar a contribuição da MI para a ampliação de nossa visão missiológica e promoção de uma concepção efetivamente integral de missão.
2. integralidade e missão no neocalvinismo holandês
Neocalvinismo é o nome comumente usado para se referir ao movimento originado na Holanda, nos séculos 19 e 20, sob a liderança de Abraham Kuyper, cuja proposta básica era aplicar os princípios do calvinismo ao relacionamento do cristão e da igreja com a sociedade e a cultura de sua época.[18] A partir dessa proposta “projetaram-se, no século 20, várias iniciativas de ação cristã transformadora em setores diversos, como filosofia e teologia, política e ação social, artes e ciências, educação e comunicações”.[19]
O neocalvinismo holandês é uma tentativa de contextualização que mantém o compromisso com a tradição teológica de pensamento. Nas palavras de Carvalho, o que Kuyper fez foi refundar o calvinismo, “seguindo de perto os princípios reformados da soberania de Deus e da unidade entre natureza e graça, articulando-os, porém, a um contexto definitivamente moderno (ou até mesmo pós-moderno)”.[20] Por um lado, portanto, o neocalvinismo é uma tentativa de aplicação relativamente recente. Por outro, ele se apresenta revestido de um lastro histórico-teológico que permite a reflexão sobre a missão da igreja dentro de um escopo amplo de discussão que considera os grandes temas da teologia. Esta é a primeira razão pela qual o consideramos uma proposta mais apropriada para a nossa reflexão missiológica. O neocalvinismo se propõe a pensar a missão da igreja em relação à cultura contemporânea sem a necessidade de promover uma revolução paradigmática messiânica, uma vez que ele pensa para além de uma teologia localizada restrita a determinados contextos socioculturais, como é o caso da MI.
Em segundo lugar, é importante destacar que o calvinismo, tradição teológica em que se fundamenta a perspectiva apresentada, é um esforço por construir um edifício teológico a partir da aplicação radical da Escritura Sagrada.
Nas palavras do próprio Calvino:
Eis aqui o princípio que distingue nossa religião de todas as demais, ou seja: sabemos que Deus nos falou e estamos plenamente convencidos de que os profetas não falaram de si próprios, mas que, como órgãos do Espírito Santo, pronunciaram somente aquilo para o qual foram do céu comissionados a declarar. Todos quantos desejam beneficiar-se das Escrituras devem antes aceitar isto como um princípio estabelecido, a saber: que a lei e os profetas não são ensinos passados adiante ao bel-prazer dos homens ou produzidos pelas mentes humanas como uma fonte, senão que foram ditados pelo Espírito Santo.[21]
Ao fazer essa afirmação não defendemos a perenidade do calvinismo enquanto paradigma teológico. Mas desejamos sugerir que existem vantagens em lidar com um edifício teológico que sustente como princípio fundamental a exclusividade de seu compromisso com a Escritura Sagrada, ao invés do diálogo sintético com qualquer pensamento imanente.[22] Foi esse compromisso radical com a Escritura que permitiu ao calvinismo e, consequentemente, ao neocalvinismo holandês, a apropriação da ideia de integralidade no sentido semântico pleno do termo. A posse desse conceito é a terceira razão de nossa sugestão.
O conceito de integralidade é fundamental à teologia reformada. Uso o termo ‘fundamental’ em seu sentido radical, com a intenção de afirmar que o conceito é, de fato, um dos pilares do que Kuyper denominou “sistema de vida calvinista”.[23] De certa forma, esse conceito também surge no calvinismo como a superação de um dualismo. No entanto, enquanto na MI o conceito de integralidade visa a superação de um dualismo específico, que diz respeito à missão institucional da igreja, no calvinismo ele visa a superação de um dualismo abrangente, que envolve a realidade como um todo. Trata-se do dualismo natureza/graça, construído a partir de uma tentativa de síntese entre elementos do pensamento cristão com a filosofia grega, e impulsionado pelo catolicismo romano.[24] Assumindo o risco de imprecisões, poderíamos defini-lo como uma mentalidade que separava toda a realidade em dois polos distintos, concebendo parte dela em relação a Deus e parte como dotada de autonomia, sem qualquer relação com Deus.[25] Essa pode parecer uma discussão meramente filosófica, mas sua abrangência é ampla:
A relação entre natureza e graça é mais do que um problema teórico. De fato, trata-se de um problema religioso fundamental, pois procura responder como a reconciliação com Deus por meio de sua obra redentora se relaciona com as estruturas espaço-temporais, antropológicas e racionais da vida.[26]
A Reforma Protestante, com maior profundidade João Calvino e a tradição calvinista, encontraram na doutrina da soberania de Deus um caminho para a superação dessa polarização. A tradição calvinista fez isso ao assumir o senhorio absoluto de Cristo sobre a realidade, conforme ilustram as tão conhecidas palavras proferidas por Abraham Kuyper em 20 de outubro de 1880, na Nieuwe Kerk, em Amsterdã: “Não há um único centímetro quadrado em todos os domínios da existência humana sobre o qual Cristo, que é o Soberano sobre tudo, não clame: é meu!”.[27]
Primeiramente, o neocalvinismo fundamenta o conceito da soberania de Deus na doutrina bíblica da criação. Um exemplo de como essa doutrina foi radicalmente considerada no pensamento neocalvinista pode ser encontrado na filosofia da ideia cosmonômica de Herman Dooyeweerd, filósofo e discípulo de Kuyper. Sua ontologia, por exemplo, descreve uma diversidade de aspectos nos quais a realidade se manifesta temporalmente, cada um deles sujeito a uma estrutura de lei divinamente ordenada. De acordo com Dooyeweerd, a lei de Deus seria a condição de possibilidade e o que estabelece os limites de absolutamente toda a realidade, normatizando o funcionamento dela em sua integralidade, desde os aspectos mais básicos como o numérico ou o espacial, passando pelos intermediários como o analítico e o linguístico até aos mais complexos como o estético, o ético e o pístico (relativo à fé).[28] Em segundo lugar, a doutrina da soberania de Deus encontra fundamento também na compreensão radical da doutrina da redenção. As palavras de Kuyper nos remetem a essa doutrina ao se referirem a Cristo. Para o sistema de vida calvinista, a salvação de Deus em Cristo possui uma extensão cósmica, e não diz respeito apenas a parte do homem, mas ao homem todo; e não apenas ao homem, mas a partir dele se estende a toda a realidade.[29]
A partir dessa compreensão radical das doutrinas da criação e da redenção, o neocalvinismo pode empregar o termo “integralidade” em seu sentido semântico – todo, inteiro, completo – e “missão” como o esforço humano de “fazer convergir para Deus toda a criação e toda vida que se desenvolve nela”.[30] Essa superação do dualismo básico natureza/graça permitirá, por fim, a superação do dualismo específico evangelização x ação social na missão da igreja, razão final pela qual sugerimos o neocalvinismo como perspectiva mais apropriada para a promoção da ampliação de nossa visão missiológica.
Filha da concepção neocalvinista de soberania é a ideia de “esferas de soberania” ou “soberania das esferas”.[31] Essa expressão foi cunhada e utilizada por Kuyper para, desafiando o absolutismo do estado moderno, afirmar o entendimento de que a soberania de Deus se manifesta socialmente no estabelecimento de um campo de atuação e de limites para as diversas instituições.
Num sentido calvinista nós entendemos que a família, os negócios, a ciência, a arte e assim por diante, todas são esferas sociais que não devem sua existência ao Estado, e que não derivam a lei de sua vida da superioridade do Estado, mas obedecem a uma alta autoridade dentro de seu próprio seio; uma autoridade que governa pela graça de Deus, do mesmo modo como faz a soberania do Estado. (...) Nesse caráter independente está necessariamente envolvida uma autoridade superior especial, a que intencionalmente chamamos de soberania das esferas sociais individuais, a fim de que possa estar claro e expresso que estes diferentes desenvolvimentos da vida social nada têm acima deles, exceto Deus, e que o Estado não pode intrometer-se aqui e nada tem a ordenar em seu campo.[32]
A partir dessa proposta do neocalvinismo holandês, a missão de sujeitar a realidade ao senhorio de Cristo é vista como uma missão coletiva. Em termos institucionais, ela não seria apenas a missão da igreja, mas a missão de cada instituição, dentro de sua esfera de atuação. Não apenas a igreja, mas “o casamento, a família, as instituições educacionais, o Estado e a sociedade como um todo devem ser organizados de acordo com os princípios cristãos”.[33]
Por consequência, seria correto dizer que a igreja possui um núcleo principal de ação que deve normatizar sua participação nesse esforço de sujeitar a realidade ao senhorio de Cristo. Segundo Kuyper esse núcleo seria promover a fé em Cristo pela pregação da Palavra, congregar os salvos e realizar serviço filantrópico ou diaconal.[34]
Ao definir a missão da igreja Kuyper enfatizou o elemento de proclamação do evangelho. Segundo ele, “para a glória de nosso Deus é necessário haver a regeneração seguida pela conversão, e a Igreja deve contribuir para esta conversão através da pregação da Palavra”.[35] Por isso, os outros dois elementos que compõem a missão da igreja são vistos em subordinação a esta tarefa de proclamação. O propósito da comunhão seria fortalecer esse testemunho. Nas palavras de Kuyper, “atiçar esta chama e fazê-la brilhar”.[36] E o serviço filantrópico ou diaconal teria como propósito manifestar o alcance da proclamação.
Isto é, revelar que “para o homem integral e para todos os aspectos da vida ele é o Christus Consolator”.[37]
Alguém pode afirmar que enfatizar a missão proclamatória da igreja seria uma visão limitadora do impacto da igreja na sociedade e na cultura. Contudo, tal afirmação revelaria ou uma visão imanente das causas da desordem social, ou uma visão limitada do poder e alcance redentor do evangelho. Pois, se partirmos da radicalidade da concepção calvinista da queda como causa de toda a desordem social, e de seu consequente apreço pelo evangelho como o poder de Deus para a transformação do homem em toda a sua relação com a realidade, a proclamação da igreja, compreendida em seu sentido amplo de aplicar o evangelho de Cristo a todas as esferas da vida, passa a ser vista como a mais fundamental necessidade para uma efetiva reforma da sociedade e da cultura, e a mais real contribuição da igreja para isso. Neste sentido, a perspectiva neocalvinista permite a superação do dualismo evangelização/ação social na missão da igreja, ao eliminar a polarização entre as duas coisas, apontando uma como efeito da outra. Ele sugere que ao invés de falar em uma coisa ou outra, ou numa coisa e outra, deveríamos falar em uma coisa pela outra.
Na prática, essa perspectiva desloca e aprofunda a questão do debate. Ao invés de nos perguntar: Deve a igreja abrir uma instituição de ensino escolar? Ela deve criar um grupo de artes? Deveríamos nos perguntar: Como uma igreja pode proclamar o evangelho de Cristo de tal modo aplicado à educação e aos relacionamentos que as instituições de ensino sejam levadas a imprimir os valores do Reino de Deus em seu exercício diário? Ou, como uma igreja proclama o evangelho de Cristo de tal modo aplicado à estética que a maneira de se fazer arte seja generalizadamente impactada? Talvez, ao fazer isso, igrejas locais pudessem descobrir vocações específicas e decidir proclamar as implicações do evangelho para determinada área da realidade, de modo especial e prático. Isso seria não apenas legítimo, mas desejável! Contudo o envolvimento da igreja neste caso deveria se dar, ainda, em subordinação à sua missão de proclamação do evangelho. Seu foco deveria ser não apenas a realização de determinadas atividades sociais ou culturais, mas a utilização delas como exemplo de como, pelo evangelho, pessoas e instituições podem trabalhar para “fazer convergir para Deus toda a criação e toda vida que se desenvolve nela”.[38] Neste caso, ela não estaria fazendo apenas evangelização e ação social/cultural, mas transformação social/cultural pela evangelização, aplicando o evangelho a todas as esferas da vida.
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Notas:
[1] KIVITZ, E. R. O evangelho integral. Disponível em:
http://edrenekivitz.com/blog/
[2] KIVITZ, 2014.
[3] REIS, G. J. B. dos. C. René Padilla: introdução à sua vida, obra e teologia. São Paulo: Arte Editorial, 2011, p. 85-86.
[4] GONDIM, R. Missão Integral: Em busca de uma identidade evangélica. São Paulo: Fonte Editorial, 2010, p. 20.
[5] NÓBREGA, E. R. Missão Integral: Fundamentos teológicos e implicações práticas. João Pessoa: Betel Publicações & Ministério Mais que Palavras, 2011, p. 21-22.
[6] CARVALHO, G. V. R. de. A missão integral na encruzilhada: Reconsiderando a tensão no pensamento teológico de Lausanne. In: RAMOS, L.; CAMARGO, M.; AMORIM, R. Fé cristã e cultura contemporânea. Viçosa: Ultimato, 2009, p. 17.
[7] Um pensamento “sintético” é um sistema teórico construído na interação entre elementos original e estruturalmente cristãos e elementos de sistemas teóricos apóstatas, cujo ponto de partida é imanente.
[8] O erro básico do marxismo seria “assumir que é possível explicar as concepções estéticas, jurídicas, morais e písticas em termos de uma reflexão ideológica de um sistema econômico de produção”. DOOYEWEERD. A New Critique of Theoretical Thought. 3ª ed. Paideia: Ontario, 1984, v. 2, p. 293. Minha tradução.
[9] GONDIM, 2010, p. 20.
[10] Cf. GONDIM, 2010, p. 20.
[11] SANCHES, S. de M. A teologia da missão integral como teologia evangélica contextual latino-americana. Revista Caminhando v. 15, n. 1, p. 65-85, jan./jun. 2010, p. 76.
[12] RAMOS, A. Palestra no Fórum Jovem de Missão Integral. Disponível em: http://www.irmaos.com/artigos/
[13] Cf. RAMOS, 2014.
[14] GONDIM, 2010, p. 20.
[15] Samuel Escobar, sobre a origem da Fraternidade Teológica Latino-Americana: “Existia o convencimento de que fazia falta um ponto de encontro que permitisse aos evangélicos pensantes entender melhor o Evangelho e sua pertinência ante a crítica situação de nossos países. Havia um desejo de unir-se e ajudar-se mutuamente a escutar com clareza a voz do Espírito Santo para seu povo na América Latina. Não nos sentíamos representados pela teologia elaborada na América do Norte e imposta através de seminários e institutos bíblicos dos evangélicos conservadores, cujos programas e literatura eram tradução servil e repetitiva, forjada em uma situação totalmente estranha à nossa. Tampouco nos sentíamos representados pela teologia elitista dos protestantes ecumênicos, geralmente calcada em moldes europeus e distante do espírito evangelizador e das convicções fundamentais das igrejas evangélicas majoritárias do continente americano”. ESCOBAR, S. La fundación de la Fraternidad Teológica Latinoamericana: Breve ensayo histórico. In: PADILLA, C. R. (org). 25 Años de Teologia Evangelica Latino Americana. Buenos Aires: FTL, 1995, p. 16. Mario Vieira de Mello, sobre o antitradicionalismo marxista: “...o que mais impressiona em tal doutrina é a petulância, é a arrogância com que cinco mil anos de existência histórica são assim descartados e reduzidos a uma crônica de acontecimentos sem idoneidade ou transparência. Nenhum outro pensamento do mundo ocidental, seja ele o de Descartes, o criador da dúvida metódica, o de Rousseau, o denegridor da sociedade, ou mesmo o do grande rebelde que foi Friedrich Nietzsche, ousou repudiar a tradição cultural da maneira por que o fez o marxismo. (..) É como se tivéssemos subitamente encontrado um marciano que se risse ou se compadecesse dos nossos pobres esforços intelectuais no sentido de verificar hipóteses por meio de experiências, de conceber a verdade das relações matemáticas, ou mesmo de articular ideias. A ruptura com o passado é, no marxismo, total”. MELLO, M. V. de. Desenvolvimento e cultura: O problema do estetismo no Brasil. 3ª ed. Brasília: Funag, 2009, p. 55.
[16] Carvalho sustenta que a falta desse lastro teológico conduziria a uma teologia genérica, definida como: “uma teologia de baixo custo, acessível a todos, adaptável aos cristãos de todas as tradições, com apelo suficiente para mobilizá-los à ação”, e localiza sua fonte na “possibilidade de criar soluções teológicas originais, contextualizadas, independentes do debate entre as grandes tradições europeias”. Cf. CARVALHO, 2009, p. 44.
[17] Cf. BARRO, A. C. Revisão do marco da missão integral. In: Congresso Brasileiro de Evangelização, 2. Missão Integral: proclamar o reino de Deus vivendo o evangelho de Cristo. Viçosa: Ultimato, 2004, p. 75-76.
[18] Cf. LIMA, Leandro A. de. O futuro do calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 71-72.
[19] CARVALHO, 2009, p. 53-54.
[20] CARVALHO, 2009, p. 53.
[21] CALVINO, João. As Pastorais. São Paulo: Paracletos, 1998, p. 262.
[22] Pensamento imanente é todo pensamento que procura explicar a realidade ignorando a relação dela com Deus.
[23] Cf. KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
[24] Cf. SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. 8ª ed. São Paulo: ABU, 2001, p. 9-10.
[25] Cf. SCHAEFFER, 2001, p. 7.
[26] CARVALHO, 2009, p. 48.
[27] BRATT, James D. Abraham Kuyper: A Centennial Reader. Grand Rapids: Eerdmans, 1998, p. 488.
[28] Cf. KALSBEEK, L. Contours of a Christian Philosophy: An Introduction to Herman Dooyeweerd’s Thought: a supplement to the collected works of Herman Dooyeweerd. Lewiston, NY: Edwin Mellen Press, 2002, p. 100.
[29] Cf. CARVALHO, G. V. R. de. O senhorio de Cristo e a missão da igreja na cultura. In: RAMOS, L.; CAMARGO, M.; AMORIM, R. Fé cristã e cultura contemporânea. Viçosa: Ultimato, 2009, p. 64. [30] KUYPER, 2002. p.62. É importante esclarecer que o neocalvinismo não sustenta uma visão otimista ingênua do impacto do evangelho sobre a realidade nesta atual conjuntura. Kuyper sustenta que uma vida completamente redimida não se manifestará “antes do segundo advento” (KUYPER, 2002, p. 69). Por consequência, o incentivo do neocalvinismo ao esforço para sujeitar a realidade ao senhorio de Cristo não se dá na esperança de que uma transformação completa da realidade aconteça no atual momento, mas de que a conformidade da realidade ao projeto criacional e a antecipação do reino vindouro, promovem a glória de Deus e o bem comum (Cf. KUYPER, 2002, p. 80-81).
[31] Cf. KUYPER, 2002, p. 86.
[32] KUYPER, 2002, p. 98.
[33] VAN TIL, H. R. O conceito calvinista de cultura. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 155.
[34] Cf. KUYPER, 2002, p. 74-76.
[35] KUYPER, 2002, p. 74.
[36] KUYPER, 2002, p. 75.
[37] KUYPER, 2002, p. 75.
[38] KUYPER, 2002. p. 62.
Sobre o autor: O autor é ministro presbiteriano formado pelo Seminário Teológico Rev. José anoel da Conceição. É licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção, mestre em Teologia Filosófica pelo CPAJ e em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atua como professor assistente na área de teologia filosófica no CPAJ e professor do departamento de cultura geral do Seminário JMC.
Fonte: Revista Fides Reformata - XIX, Nº 1 (2014), p. 61-72.
Divulgação: Bereianos
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