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Por André R. Fonseca
Reduzido a si mesmo, o homem está perdido. Seus esforços, sua boa vontade, suas boas intenções, suas virtudes, nada é suficiente para dissipar o seu mal estar. Ele se apercebe que, mesmo os mais sinceros esforços que ele empreende para eliminar o mal, desencadeiam um novo mal. Há dentro dele um veneno que ele recebeu com a própria vida, que persiste tanto quanto dura a sua vida, e que contamina tudo com antecedência.
Ele percebe a solidariedade do mal, uma ligação fatal entre todos os homens e entre todas as gerações, uma tara fundamental, um pecado original... "Quem da imundícia poderá tirar coisa pura? Ninguém", assim exclama Jó (14:4). O mal está dentro e não somente fora; está no pensamento, como lembra o apóstolo Tiago quando fala da língua: "... a língua está situada entre os membros de nosso corpo, e contamina o corpo inteiro e não só põe em chamas toda a carreira da existência humana, como é posta ela mesma em chamas pelo inferno" (Tg 3:6).
Não há nenhum justo, todos os homens são culpados, todos sabem disto e o sentem mais ou menos claramente. A culpa não é uma invenção da Bíblia ou da igreja. Ela é uma presença universal na alma humana. A psicologia moderna confirma sem reservas o dogma cristão. Nisso ela vem fazer justiça à igreja: "Mme. Choisy, psicanalista, escreve "Longe de cultivar a culpa, a igreja, como a psicanálise, tornou-a consciente, o que é uma maneira de se descarregar dela".
Este é o balanço de nosso estudo, ainda que o tenha pintado incompletamente com pequenas pinceladas, segundo o meu modo de pensar. Eu não sou mais do que um eterno passeador pelo jardim humano, como um botânico que colhe, nas viradas de seu caminho, algumas flores, um pequeno ramalhete, simples lembranças de inumeráveis riquezas da natureza que ele não pode abraçar. Um espírito mais sistemático que o meu demonstraria com mais rigor esta universalidade da culpa, este peso inexorável que pesa sobre todos os homens.
O peso desta culpa é tão intolerável que todos os homens apresentam este reflexo da autojustificação que a psicologia moderna descreve sob o termo científico de "repressão da consciência", que quer dizer reprimir a culpa até a inconsciência, fora do campo da consciência. O evangelista nos diz que, quando Jesus pronunciou a parábola do fariseu e do publicano, ele "propôs também esta parábola a alguns que confiaram em si mesmos por se considerarem justos... " (Lc 18:9). Há outros textos neste sentido: "O homem perverso mostra dureza no seu rosto..." (Pv 21:29). "Todo caminho do homem é reto aos seus próprios olhos... " (Pv 21:2). "Tal é o caminho da mulher adúltera; come, e limpa a boca, e diz: Não cometi maldade" (Pv 30:20).
Pensem em quantas coisas falamos, pronunciadas frequentemente de maneira hábil e discreta, que não têm outra finalidade senão de justificar-nos das críticas que possam nos fazer. Mesmo uma citação bíblica pode servir para isso. Um pastor, em uma carta, apresentou-me, com toda a boa fé, uma completa justificação teológica para o adultério. Um marido que está enganando a esposa lhe diz, para tranquilizar a sua própria consciência: "Você tem vantagem em permitir que eu faça isso; porque você me perdoando, eu me torno bem mais gentil com você". Em processo de divórcio, quando marido e mulher lutam selvagemente pela guarda das crianças, o fazem porque isto poderá servir-lhes como um certificado de inocência.
Assim todo homem se enrijece, se endurece, para encobrir a sua culpa. O estranho paradoxo que todas as páginas do evangelho nos mostram, e nós podemos verificar todo dia, é que o obstáculo à graça não é a culpa, como pretende o moralismo, mas sim a repressão da culpa, a justificação própria, a justiça própria, o virtuosismo. Um homem está lá no meu consultório, a conversa é difícil, sem vida, opressiva. Eu surpreendo-me a dar uma olhada no relógio que colocará fim à conversa! Eu me sinto absolutamente impotente: este homem está satisfeito consigo mesmo, goza de uma boa saúde e não se recrimina de nada.
Bem ao contrario, um outro dia vem um doente que se enche de recriminações. Tal consciência de culpa é um fator claramente patológico. Portanto, tudo de que ele se acusa são faltas que todos nós, inclusive eu, cometemos. Então, uma questão vem me inquietar: "Será que a saúde tem por prêmio um certo recalque de culpa? Será que nós não ficaríamos todos deprimidos se uma certa superficialidade, uma certa negligência, não contribuísse, tanto quanto a graça, para nos confortar?
Não encontro resposta para isso. E sem dúvida um mistério que pertence só a Deus. Mas me parece que Paul Ricoeur tem razão quando propõe encarar a neurose como sendo "a falha em exonerar-se da culpa". A boa saúde seria, então, o sucesso visível do processo de desculpas, a vigilância perfeita do reflexo da justificativa de si mesmo.
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Extraído de: TOURNIER, Paul. Culpa e graça: uma análise do sentimento de culpa e o ensino do evangelho [tradução Rute Silveira Eismann]. — São Paulo: ABU, 1985. Textos para reflexão - 2, pp. 62 e 63.
PAUL TOURNIER, um psiquiatra suíço eminente, começou sua vida profissional como médico em Genebra em 1928. Sua preocupação com a medicina integral o levou à prática da psicoterapia.
Fonte: Teologia et setera
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