Isvonaldo sou Protestante

Isvonaldo sou Protestante

sábado, 10 de maio de 2014

 
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Por Rev. Alan Rennê Alexandrino Lima 


O fundamento das bênçãos usufruídas pelos incrédulos: criação ou expiação?

Leandro Antonio de Lima afirma que arminianos, luteranos e calvinistas são de acordo “que todos os seres humanos, mesmo os incrédulos, recebem algum benefício da morte de Cristo”.[19] Deve ser observado, não obstante, que os teólogos calvinistas não são unânimes em afirmar isso. Nem todos os calvinistas concordam que os réprobos recebam algum benefício da morte de Cristo. É interessante observar que mesmo entre os teólogos reformados que admitem a existência da graça comum e de bênçãos destinadas aos ímpios não existe unanimidade quanto ao fundamento de tais benesses. Há alguns que acreditam que a graça comum manifestada para com os réprobos está alicerçada na criação, enquanto outros enxergam a expiação como o seu elemento patrocinador.

2.1. A criação como fundamento da graça comum e das bênçãos concedidas aos répobros

No primeiro grupo podem ser elencados estudiosos como Abraham Kuyper e David Martyn Lloyd-Jones.

Abraham Kuyper, na sua obra De Gemene Gratie, publicada em 1902, afirma que “Deus oferece graça a todas as pessoas por permitir que o mundo siga adiante após a queda no pecado”.[20] Para Kuyper a essência da graça comum consiste tanto numa certa restrição de Deus sobre o processo de desenvolvimento do pecado quanto numa certa realização positiva na história, de maneira que o homem pecador é habilitado por Deus através dos dons e talentos concedidos pelo Espírito Santo.[21] Deve ser observado, entretanto, que apesar de Kuyper desenvolver o seu pensamento a este respeito levando em consideração a ação de Deus após a entrada do pecado no mundo, a doutrina da graça comum, como afirma Franklin Ferreira, “está intimamente relacionada com a compreensão das várias esferas da criação, do Estado, da Igreja, da família e do indivíduo”.[22]

Desse modo, as bênçãos conferidas aos incrédulos têm a sua origem na bondade comum de Deus como o Criador e o Sustentador da criação, mesmo após a queda. No livro A Obra do Espírito Santo Kuyper afirma claramente que dons e talentos são concedidos tanto a ímpios como aos crentes com base na atividade criadora de Deus. No Volume I, discorrendo sobre a concessão de dons e talentos por ocasião da criação, Kuyper destaca as bênçãos concedidas aos descendentes de Caim na forma de dons e habilidades artísticas. Ele se refere às bênçãos de Deus como sendo “tesouros de Deus”:
O primeiro impulso dado à habilidade artística foi entre os descendentes de Caim: os Jubal e os Jabal Tubalcaim foram os primeiros artistas. Não obstante esse desenvolvimento todo, embora se alimentando dos tesouros de Deus, afastaram-se mais e mais dele, enquanto seu próprio povo simplesmente não tinha esse impulso.[23] 

Se há, no pensamento de Kuyper, uma ligação entre tais bênçãos e Cristo, ela se explica devido ao papel de Cristo como “o Mediador da criação, a luz que ilumina todo homem vindo ao mundo”.[24] Henry Van Til expõe o pensamento kuyperiano com propriedade:
A graça comum, embora não salvadora e restrita a esta vida (I, 220, 497; II, 277, 679), tem sua fonte em Cristo como mediador da criação (II, 645) já que todas as coisas existem por meio da Palavra eterna. Por isso, o ponto de partida para a graça comum é a criação e a esfera do natural.[25]

Para Kuyper, apenas a graça especial, ou graça particular, está relacionada à expiação. A graça comum, por sua vez, está relacionada à criação, como ele mesmo afirma:
Ao mesmo tempo o Calvinismo tem dado proeminência ao grande princípio de que há uma graça particular que opera a salvação, e também uma graça comum pela qual Deus, mantendo a vida no mundo, suaviza a maldição que repousa sobre ele, suspende seu processo de corrupção, e assim permite o desenvolvimento de nossa vida sem obstáculos, na qual glorifica-se a Deus como Criador. [26]

D. Martyn Lloyd-Jones também é da opinião que as bênçãos desfrutadas por aqueles que não fazem parte do povo de Deus têm o seu fundamento, não na obra expiatória do Senhor Jesus Cristo, mas na criação. Para ele, o Espírito Santo atua distribuindo tais benefícios a todos os homens indistintamente como uma parte do desígnio criativo de Deus: “O Espírito Santo tem estado operante neste mundo desde o princípio, e Ele tem exercido Sua influência e suas ações sobre os homens e mulheres que não são salvos e que têm ido para a perdição”.[27] Ele diz ainda que, essa influência do Espírito “não é de caráter salvífico nem uma influência redentiva, e sim, é uma parte do propósito divino”.[28] Tal influência é necessária para o desenvolvimento do que ele chama de “opinião pública” a respeito de temas morais e, principalmente, para o desenvolvimento da cultura, algo que Kuyper sempre enfatizou.

2.2. A expiação como fundamento da graça comum e dos benefícios desfrutados pelos ímpios

O grande problema com a posição anterior é que ela não considera o fato de que mesmo os ímpios e réprobos estão em uma relação com a cruz de Cristo. Berkhof fala de uma relação pactual: “Em toda transação pactual registrada na Escritura se vê que a aliança da graça traz, não somente bênçãos espirituais, mas também bênçãos materiais, e essas bênçãos materiais são de tal natureza que delas participam também os descrentes”.[29] É bem verdade que os mesmos não são objetos das influências salvíficas da expiação, não obstante, é de se esperar que uma obra dessa magnitude também possua efeitos cósmicos. Diante disso, não é um absurdo que os réprobos sejam beneficiários dos efeitos colaterais e cósmicos da cruz de Cristo, como afirma Herman Bavinck:
Embora a expiação vicária como a aquisição de salvação em sua totalidade não possa ser expandida para incluir todas as pessoas individualmente, não quer dizer que ela não tenha significado para aqueles que estão perdidos. Nesse sentido, entre a igreja e o mundo não existe apenas separação e contraste. Não é o caso que Cristo tenha adquirido todas as coisas para a primeira e nada para o último. Ao rejeitar o universalismo não se pode esquecer que o mérito de Cristo tem seus limites ainda para a igreja e seu valor e significado para o mundo.[30] 

O teólogo escocês John Murray também enxerga a expiação como a fonte, ainda que indireta, das bênçãos e dos benefícios usufruídos por aqueles que não fazem parte do povo de Deus:
Os descrentes e reprovados neste mundo desfrutam de numerosos benefícios que fluem do fato de Cristo ter morrido e ressuscitado. O domínio da mediação de Cristo é universal. Cristo é o cabeça sobre todas as coisas e a ele foi dada autoridade nos céus e na terra. É dentro desse domínio mediador que todas as bênçãos que os homens desfrutam são dispensadas. Cristo, porém, exerce esse domínio com base na recompensa de sua obra consumada de redenção: “A si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome” (Fp 2.8,9). Consequentemente, uma vez que todos os benefícios e bênçãos estão dentro da esfera do domínio de Cristo e que esse domínio repousa sobre sua obra consumada de expiação, conclui-se que os inumeráveis benefícios dos quais todos os homens desfrutam estão, indiscriminadamente, relacionados à morte de Cristo, da qual resultam, pode-se dizer, de uma forma ou outra.[31]

Isso é reforçado quando o conceito de “graça” é levado em consideração. De acordo com Bavinck, “todos os benefícios do pacto que Cristo adquiriu e o Espírito Santo aplica podem ser sumariados pela palavra ‘graça’”.[32] Por essa razão, acredita-se que tanto a graça comum como a graça especial fluam a partir da obra expiatória de Cristo na cruz do Calvário.

Isto posto, a grande questão se torna determinar quais são os efeitos colaterais da cruz de Cristo que recaem como bênçãos sobre os incrédulos e réprobos. Mais uma vez, Bavinck afirma que Jesus como o Mediador – o Messias – concede aos incrédulos muitos benefícios: “o chamado do evangelho, a advertência quanto ao arrependimento, a fé histórica, uma vida virtuosa, uma variedade de dons e poderes, ofícios e ministérios dentro da igreja, como, por exemplo, o ofício apostólico no caso de Judas”.[33] 

Merece consideração também o refreamento do pecado como um dos efeitos colaterais da cruz de Cristo. É possível que alguém argumente que o efeito restringente do pecado, em vez de ser uma bênção fundamentada na expiação, seja uma manifestação da graça comum de Deus tendo a criação como o seu fundamento. Abraham Kuyper, por exemplo, afirma o seguinte:
O pecado, segundo o Calvinismo – e essa explicação está em pleno acordo com as Escrituras Sagradas[sic] o pecado desenfreado e desacorrentado, deixado a si mesmo, teria imediatamente conduzido a uma degeneração total da vida humana, como pode ser inferido do que foi visto nos dias anteriores ao dilúvio. Mas Deus interrompeu o curso do pecado a fim de evitar a completa aniquilação de seu divino trabalho manual, o que naturalmente teria acontecido. Ele interferiu na vida do indivíduo, na vida da humanidade como um todo e na vida da própria natureza por meio da sua graça comum. Esta graça, contudo, não aniquila a essência do pecado, nem a salva para a vida eterna, porém impede a execução completa do pecado, do mesmo modo como o discernimento humano impede a fúria de animais selvagens.[34] 

Ele assevera ainda que:
Deus, por meio da sua “graça comum”, restringe a operação do pecado no homem, em parte quebrando seu poder, em parte domando seu espírito mal[sic], e em parte domesticando sua nação ou sua família. Assim, a graça comum tem levado ao resultado de que um pecador não regenerado pode cativar-nos e atrair-nos pelo que é nele belo e cheio de energia, exatamente como acontece com nossos animais domésticos, mas isto certamente à maneira do homem. A natureza do pecado, contudo, permanece tão venenosa quanto era.[35] 

Deve ser observado, porém, que a suspensão do processo de corrupção do mundo, de acordo com Kuyper, é uma expressão da graça comum de Deus pela qual ele é glorificado como Criador.[36] Na sua obra De Gemene Gratie, Kuyper deixa essa relação clara:
Mas, após a morte segue um processo de desintegração do cadáver. E é essa desintegração espiritual do cadáver que poderia ser e foi restringida, não totalmente mas em parte. Não totalmente, de maneira que o temeroso resultado do pecado pode ser evidente para todos, mas em parte, de maneira que também dessa maneira a saúde da criação de Deus e de Seu poder re-criador em nossa raça pecaminosa possa ser glorificado.[37] 

A dificuldade envolvida nesse pensamento reside no fato de não se considerar a função da manifestação da graça comum, de uma forma geral, e do refreamento do pecado, de forma específica. A graça comum serve aos propósitos da graça especial de Deus na salvação dos seus eleitos. Num artigo intitulado Common Grace, John Murray expõe essa relação:
O propósito redentivo de Deus repousa no centro da história desse mundo. Embora não seja o único propósito a ser cumprido na história e não seja a única finalidade à qual todas as outras estão subordinadas, certamente é o fluxo central da história. No entanto, é no contexto mais amplo da história que o propósito redentivo de Deus é realizado. Encontramos esse contexto amplo para ser uma dispensação da paciência e da bondade divinas. Em outras palavras, é que a esfera de vida ou fluxo amplo da história providenciado pela graça comum que provê a esfera de operação do propósito especial de redenção e salvação de Deus. Isso significa simplesmente que esse mundo ajudado e preservado pela graça de Deus é a esfera e plataforma sobre a qual sobrevêm as operações da graça especial e na qual a graça especial trabalha para a realização do seu propósito de salvação e a perfeição de todo o corpo dos eleitos. A graça comum, então, recebe ao menos uma explicação a partir do fato da graça especial, e a graça especial tem a sua pré-condição e esfera de operação na graça comum. Sem a graça comum a graça especial não seria possível porque não teria nenhum material sobre o qual pudesse erguer a sua estrutura. É a graça comum que fornece não apenas a esfera sobre a qual, mas também o material a partir do qual, o edifício bem ajustado pode crescer num templo santo no Senhor. É a raça humana preservada por Deus, dotada de diversos dons por Deus, num mundo sustentado e enriquecido por Deus, subsistindo por meio de várias perseguições e campos de labor, que provê os sujeitos para a graça redentiva e regeradora... Para concluir... a graça comum provê a esfera de operação da graça especial e a graça especial, portanto, fornece uma lógica da graça comum.[38] 

A graça comum dispensada por Deus sobre os ímpios e réprobos manifestada através dos benefícios desfrutados por eles serve aos propósitos salvíficos de Deus. Os incrédulos recebem a graça comum por causa dos eleitos de Deus – os que já foram salvos e os que ainda serão. Berkhof se expressa da seguinte maneira:
Se Cristo devia salvar uma raça eleita, paulatinamente chamada do mundo da humanidade no transcurso dos séculos, era necessário que Deus exercesse paciência, detivesse o curso do mal, promovesse o desenvolvimento das faculdades naturais do homem, mantivesse vivo nos corações dos homens o desejo de manter a justiça civil, a moralidade exterior e a boa ordem da sociedade, e derramasse incontáveis bênçãos sobre a humanidade em geral.[39] 

Nesse sentido, é imprescindível compreender que os benefícios recebidos pelos ímpios não fluem diretamente da cruz de Cristo, mas indiretamente. Em outras palavras, nada mais são do que efeitos colaterais da obra expiatória de Jesus Cristo, visando o benefício direto do povo de Deus. Wayne Grudem se expressa da seguinte forma: “Entretanto, sobre esse último ponto é necessário dizer que a graça comum flui indiretamente da obra redentora de Cristo, visto que Deus não julgou o mundo quando o pecado se introduziu porque ele planejou finalmente salvar alguns pecadores através da morte de seu Filho”.[40] 


Continua nos próximos dias...

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Notas:
[19] Leandro Antonio de Lima. Razão da Esperança: Teologia para Hoje. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p. 283.
[20] J. van Genderen e W. H. Velema. Concise Reformed Dogmatics. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing, 2008. p. 294.
[21] Cornelius Van Til. Common Grace & The Gospel. Nutley, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing, 1977. p. 15.
[22] Franklin Ferreira. Teologia Cristã. p. 154.
[23] Abraham Kuyper. A Obra do Espírito Santo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 78. Ênfase acrescentada.
[24] Louis Berkhof. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2001. p. 403.
[25] Henry Van Til. O Conceito Calvinista de Cultura. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 141.
[26] Abraham Kuyper. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002. pp. 38-39. Ênfase acrescentada.
[27] D. Martyn Lloyd-Jones. Deus o Espírito Santo. pp. 36-37.
[28] Ibid. p. 37.
[29] Louis Berkhof. Teologia Sistemática. p. 404.
[30] Herman Bavinck. Reformed Dogmatics: Sin and Salvation in Christ. Vol. 3. Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2009. p. 470.
[31] John Murray. Redenção Consumada e Aplicada. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 55. Ênfase acrescentada.
[32] Herman Bavinck. Reformed Dogmatics. Vol. 3. p. 573. Aqui Bavinck também tem em mente a graça comum, como as suas próprias palavras demonstram: “Mas graça significa diferentes coisas para diferentes pessoas. Em primeiro lugar, ela pode denotar o favor imerecido que Deus concede a suas criaturas, especialmente aos seres humanos como pecadores. Segundo, é um termo para toda sorte de benefícios espirituais e físicos que Deus em sua graça concede a suas criaturas e que são coletivamente chamados de ‘dons da graça’ e ‘graça’”. Cf. Herman Bavinck. Reformed Dogmatics. Vol. 3. p. 574.
[33] Ibid. p. 471.
[34] Abraham Kuyper. Calvinismo. p. 130.
[35] Ibid. p. 131.
[36] Ibid. pp. 38-39.
[37] Apud in Cornelius Van Til. Common Grace & The Gospel. p. 15.
[38] Apud in Robert L. Reymond. A New Systematic Theology of the Christian Faith. Nashville, TN: Thomas Nelson, 1998. p. 403. Ênfase acrescentada.
[39] Louis Berkhof. Teologia Sistemática. p. 404.
[40] Wayne Grudem. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2002. p. 550.

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Fonte: Os efeitos colaterais da obra expiatória de Jesus Cristo, por Alan Rennê Alexandrino Lima, São Paulo 2011. Trabalho apresentado ao Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, em cumprimento dos requisitos do módulo A Obra do Redentor, ministrado pelo professor Dr. Heber Carlos de Campos.

Artigo gentilmente cedido pelo autor ao blog Bereianos.

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